Ponto de fuga
A falta que a figura faz
A figuração narrativa reunia artistas que faziam quadros com
personagens, coisas reconhecíveis, e reivindica-vam para a arte uma
visão política insubmissa; eram escolhas arriscadas
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Muita energia, sentimento de urgência, de crítica, de dúvida,
de contradição. Prazer em misturar níveis de cultura, para extrair deles uma visão aguda,
irônica até o paroxismo. Tudo
isso vazado na boa tradição da
pintura, feita com maestria. De
uma certa forma, eles reinventaram, atualizada, o que outrora se denominava "pintura de
história".
Foi aí por volta de 1965. A
aventura continuou por uns 15
anos. Hegemônica no pós-guerra, a abstração entrara em
crise. Era o momento em que
os americanos urdiam uma arte cheia de signos, a pop art. Ela
triunfava na Bienal de Veneza.
Surgia então em Paris a "figuração narrativa". Reunia artistas que faziam quadros com
personagens, coisas reconhecíveis, e reivindicavam para a arte uma visão política insubmissa. Eram escolhas arriscadas.
Primeiro, reafirmar a pintura quando a pop art trazia de
volta a era dos ready-made. Depois, impor imagens bem trabalhadas, quando as abstrações
diversas pareciam ter dado um
xeque-mate nelas.
Enfim, ecoavam ainda as
tristes polêmicas impostas pela
figuração ideologicamente
submissa do realismo socialista
aos artistas próximos do Partido Comunista. Sem contar as
lembranças do uso assustador
que os outros regimes totalitários haviam feito das artes. Era
consenso, então, que uma pintura política deveria, por força,
cheirar mal.
Rigor
A figuração narrativa caminhava por terrenos minados.
Além de tudo, como buscavam
na publicidade, nos quadrinhos, no cinema muito de sua
inspiração, foram tachados de
uma cópia européia da pop art.
Não eram. A pop art tem caráter de constatação e deriva
de Duchamp [1887-1968]. A figuração narrativa quer intervir
no mundo. Recusou Duchamp
e o denunciou como um cúmplice do mercado norte-americano. Assassinou-o numa vasta
obra coletiva, "Viver e Deixar
Morrer ou o Fim Trágico de
Marcel Duchamp".
Global
Aillaud pinta animais aprisionados, que parecem concentrar, opressos, o peso de uma tirania humana.
Fromanger toma a rua como lugar da história
e fez filmes com Jean-Luc Godard. Rancillac acusa as ditaduras. Monory cria pesadelos monocromáticos.
A esses franceses associaram-se estrangeiros. Adami,
italiano, decompõe e imobiliza
os seres de maneira trágica; Erró, islandês, torna-se uma das
estrelas do grupo. Havia ainda
Fahlström [1928-76], sueco
nascido em São Paulo, Klasen,
alemão de Lübeck, Peter Saul,
californiano, Stämpfli, suíço,
muito brilhantes, todos.
Alguns ideavam uma pintura
coletiva e inventaram a Cooperativa dos Mal-Sentados ("des
malassis"), animada sobretudo
por Henri Cueco, e a Equipo
Crónica, composta pelos espanhóis Valdés e Solbes.
Fetichismo
A posteridade lhes foi desdenhosa. O mundinho das bienais, do mercado, do jornalismo pôs no limbo esses artistas
incômodos.
Em Paris, no Grand Palais
[até 13 de julho], montou-se
agora uma retrospectiva da figuração narrativa, que vai até o
ano de 1972, como se depois
seus artistas não existissem
mais. Ao menos, tornou visível
telas poderosas, amplas, cheias
de impacto, ferozes com a história de seu tempo.
"Diálogos com meu Jardineiro", filme recente de Jean Becker, inspirou-se num romance
de Cueco. Traz uma nostalgia
fiel à prática figurativa e à pintura social.
A exposição de Paris está
meio às moscas. Ao lado, no
mesmo edifício, há outra mostra: "Maria Antonieta". Anda
apinhada. Nela se vê a cadeira
em que a soberana pôs, pela última vez, seu real bumbum.
jorgecoli@uol.com.br
São Paulo, domingo, 15 de junho de 2008
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