segunda-feira, 20 de abril de 2015

Ponto de fuga

A falta que a figura faz
A figuração narrativa reunia artistas que faziam quadros com personagens, coisas reconhecíveis, e reivindica-vam para a arte uma visão política insubmissa; eram escolhas arriscadas
JORGE COLI COLUNISTA DA FOLHA
Muita energia, sentimento de urgência, de crítica, de dúvida, de contradição. Prazer em misturar níveis de cultura, para extrair deles uma visão aguda, irônica até o paroxismo. Tudo isso vazado na boa tradição da pintura, feita com maestria. De uma certa forma, eles reinventaram, atualizada, o que outrora se denominava "pintura de história".
Foi aí por volta de 1965. A aventura continuou por uns 15 anos. Hegemônica no pós-guerra, a abstração entrara em crise. Era o momento em que os americanos urdiam uma arte cheia de signos, a pop art. Ela triunfava na Bienal de Veneza.
Surgia então em Paris a "figuração narrativa". Reunia artistas que faziam quadros com personagens, coisas reconhecíveis, e reivindicavam para a arte uma visão política insubmissa. Eram escolhas arriscadas.
Primeiro, reafirmar a pintura quando a pop art trazia de volta a era dos ready-made. Depois, impor imagens bem trabalhadas, quando as abstrações diversas pareciam ter dado um xeque-mate nelas.
Enfim, ecoavam ainda as tristes polêmicas impostas pela figuração ideologicamente submissa do realismo socialista aos artistas próximos do Partido Comunista. Sem contar as lembranças do uso assustador que os outros regimes totalitários haviam feito das artes. Era consenso, então, que uma pintura política deveria, por força, cheirar mal.

Rigor A figuração narrativa caminhava por terrenos minados.
Além de tudo, como buscavam na publicidade, nos quadrinhos, no cinema muito de sua inspiração, foram tachados de uma cópia européia da pop art.
Não eram. A pop art tem caráter de constatação e deriva de Duchamp [1887-1968]. A figuração narrativa quer intervir no mundo. Recusou Duchamp e o denunciou como um cúmplice do mercado norte-americano. Assassinou-o numa vasta obra coletiva, "Viver e Deixar Morrer ou o Fim Trágico de Marcel Duchamp".

Global Aillaud pinta animais aprisionados, que parecem concentrar, opressos, o peso de uma tirania humana.
Fromanger toma a rua como lugar da história e fez filmes com Jean-Luc Godard. Rancillac acusa as ditaduras. Monory cria pesadelos monocromáticos.
A esses franceses associaram-se estrangeiros. Adami, italiano, decompõe e imobiliza os seres de maneira trágica; Erró, islandês, torna-se uma das estrelas do grupo. Havia ainda Fahlström [1928-76], sueco nascido em São Paulo, Klasen, alemão de Lübeck, Peter Saul, californiano, Stämpfli, suíço, muito brilhantes, todos.
Alguns ideavam uma pintura coletiva e inventaram a Cooperativa dos Mal-Sentados ("des malassis"), animada sobretudo por Henri Cueco, e a Equipo Crónica, composta pelos espanhóis Valdés e Solbes.

Fetichismo A posteridade lhes foi desdenhosa. O mundinho das bienais, do mercado, do jornalismo pôs no limbo esses artistas incômodos.
Em Paris, no Grand Palais [até 13 de julho], montou-se agora uma retrospectiva da figuração narrativa, que vai até o ano de 1972, como se depois seus artistas não existissem mais. Ao menos, tornou visível telas poderosas, amplas, cheias de impacto, ferozes com a história de seu tempo.
"Diálogos com meu Jardineiro", filme recente de Jean Becker, inspirou-se num romance de Cueco. Traz uma nostalgia fiel à prática figurativa e à pintura social.
A exposição de Paris está meio às moscas. Ao lado, no mesmo edifício, há outra mostra: "Maria Antonieta". Anda apinhada. Nela se vê a cadeira em que a soberana pôs, pela última vez, seu real bumbum.


jorgecoli@uol.com.br

São Paulo, domingo, 15 de junho de 2008

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