Mulheres, poderes e vozes
Teoria do assim-assado
Muitos se acostumaram com a teoria de que existe uma natureza feminina e uma masculina. Brincando um pouco, podemos definir essas teorias como teorias do “assim-assado”. Segundo as teorias do assim-assado, homens são fortes e mulheres são fracas, homens são racionais e mulheres são sentimentais, homens nasceram para prover, mulheres nasceram para procriar. Em resumo, homens foram feitos para o poder e a vida pública e mulheres para a impotência e a menoridade da vida doméstica.
As teorias do assim-assado são o fruto do que em filosofia chamamos de “princípio de identidade”. Trata-se de uma questão elaborada em termos de lógica e de metafísica e também de teoria do conhecimento. Aquela mania de pensar por redução do desconhecido ao conhecido, do que não se sabe ao já sabido. No processo mental e línguistico próprio do princípio de identidade, a complexidade é reduzida a um padrão binário “verdadeiro-falso”, “certo-errado”, “bom-mau”, “preto-branco”, “bonito-feio”, “masculino- feminino”, “homem-mulher”, “heterossexual-homossexual”, “esquerda-direita”. Ou seja, esse modo de pensar estrutura o todo da vida, a ética, a estética e a política.
Fato é que, infelizmente, todo preconceito também se baseia nessa lógica binária que nos impede de ver mais longe. A função do preconceito é simples, explicar o mundo para que tudo continue como está, para que não haja mudanças de pensamento e nem de ação. Para que o poder se perpetue como tal. Pensar dialeticamente é ir além do padrão binário. É ir além do poder. Um pensamento dialético é aquele que percebe que um se torna o outro, de que um depende do outro, de que a identidade forja a diferença. E de que há muita enganação na forja do sistema de crenças que constitui os discursos.
Poucas pessoas se perguntam sobre os interesses que levam à formulação dessas teorias no que diz respeito às mulheres. Podemos nos perguntar pelos autores de tais ideias e obteremos como resposta que eram homens. E que estes homens, ao criarem e reproduzirem tais teorias, tinham como interesse a manutenção de um tipo de poder que se exercia sobre mulheres. Mas também sobre todos aqueles que não fossem homens segundo a própria definição que os homens deram deles mesmos como sendo seres superiores às mulheres. E também aos que podemos entender como sendo os “não homens”. Todas as existências que não se encaixam no paradigma da masculinidade. Lembremos que a feminilidade faz parte desse paradigma, que o feminino foi inventado por esta lógica que precisa identificar e assim encaixar o diferente em sua norma.
Ora, foram os homens que inventaram as teorias pretendendo que as teorias explicativas do “outro” apresentassem uma verdade total sobre aquilo que eles mesmos chamaram de “outro”. Por isso, é tão perigoso levar a sério essas teorias quando se perde de vista o motivo ao qual elas serviam e ainda servem.
A voz e o poder
Como os homens criaram essas teorias? Criando textos literários, religiosos, jurídicos, científicos e também filosóficos. Criaram essas teorias tornando-se donos das expressões articuladas. Foram donos das vozes e seus administradores. Ora, a voz é metáfora do poder. Já em Aristóteles, quatro séculos antes de Cristo, ficava claro o nexo entre o poder e a voz. A participação na vida pública dependia da articulação da voz humana que podia expressar ideias, podia expressar o logos. O ser humano é o animal que possui “logos”, ou seja, pensamento racional, calculado, por meio do qual ele articula seu lugar como ser político, ou seja, ser de relações.
Historicamente as mulheres não tiveram direito à voz. Por isso, ficaram de fora do poder. A conquista do poder é a conquista da voz.
A voz também é corpo. A conquista da voz é a conquista do corpo. Por isso, quando uma mulher se pronuncia sobre sua vida, seu desejo, seu lugar, quando ela vota, ou quando ela se candidata a um cargo, quando ela assume espaço na vida pública, tudo isso é efeito da voz, que é mais do que uma metáfora do poder. É o caminho do poder e sua expressão.
Um silêncio forçado
Longe da voz pública, as mulheres viveram de vozes privadas. Sempre penso nas cantoras de antigamente que não compunham suas próprias músicas. Penso nas escritoras que só com muito custo começaram a escrever – depois da luta histórica das feministas por educação – e que até hoje sofrem no cenário masculinista no campo da literatura. Penso no silêncio sobre as mulheres filósofas na história do pensamento.
A relação entre o silêncio e as mulheres já foi notada por muita gente. A história das mulheres é a história de um grande silêncio. Um silêncio na política, na ética, na estética, na religião. Um silêncio que é fruto do controle que a dominação masculina exerceu sobre mulheres impedindo-as de chegarem ao poder.
Poder significa não apenas o fazer, o mandar, o ordenar, o comandar, o controlar. Tudo isso corresponde a formas de poder. O poder não é apenas a instituição da força. Poder significa, sobretudo, protagonismo, o lugar soberano, o estar no centro estratégico a partir do qual um mundo se torna possível. Esse mundo é o mundo da voz.
Escrevo isso pensando em uma pergunta feita há muito tempo por Walter Benjamin em um texto chamado “A Conversação” (Das Gespräch): “Como conversavam Safo e suas amigas?”.
Penso agora não apenas nos textos escritos por mulheres, textos que vem à tona do rio lamacento da história, por meio de pesquisas de historiadoras feministas. Mas penso, sobretudo, se essa pergunta poderia ser reformulada nos termos do poder:
“Que poder exerceria Safo com suas amigas?”.
Um tempo pra pensar na resposta evitando cair nas fáceis teorias do assim-assado é o que eu espero alcançar no próximo post.
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