segunda-feira, 7 de maio de 2018

QUANDO EXPLODE A VINGANÇA
Sergio Leone, Giù la Testa, 1971, Itália/México
De todos os grandes filmes de Sergio Leone, Quando Explode a Vingança é de longe o mais desconhecido. Lançado em vídeo no Brasil em versão dublada com quase quinze minutos a menos do que seu tamanho original, raramente exibido na televisão e contando muito pouco com a repercussão que tiveram tanto a trilogia como os Era uma Vez..., o filme existe um pouco como um buraco negro na carreira do cineasta. Mesmo quando visto, Quando Explode a Vingança é muitas vezes mal compreendido. Filme de transição, esta penúltima obra de Sergio Leone é comumente recebida com ressalvas quanto ao tom, e sofre da comparação bastante injusta com os filmes pregressos do diretor. Injusta não porque o filme não se sustentaria diante de Três Homens em Conflito ou Era um Vez no Oeste. Injusta sobretudo porque Leone entra, com Quando Explode a Vingança, em outra fase de carreira, auto-interrogativa e em modo reflexivo. Não que a estilização de ...Oeste ou as intrincadas relações entre os protagonistas da trilogia suma: essas características presentes por toda a obra de Leone – e, convenhamos, já excessivamente lembradas quando se resolve falar sobre o cineasta – aqui ganham uma maior densidade, se complexificam, e o que antes existia em valor icônico (a fruição paródica e referencial do estilo comendo o próprio rabo e "se observando morrer", como dizia Serge Daney a propósito de Era uma Vez no Oeste) readquire características de símbolo: já há um mundo palpável ao contrário do papelão, já há um contexto que impele os heróis a agir, já há a densidade da História que, mesmo se prestando a tessituras equívocas – como atribuir a um gesto fracassado de bandidagem a pecha de heroísmo de guerra –, mostra suas sendas e se imprime na carne e nas decisões das pessoas. E, talvez acima de tudo, há um passado. Um verdadeiro passado que, como tal, nunca passa.

Quando Explode a Vingança é um filme que explica perfeitamente a passagem de Era uma Vez no Oeste para Era uma vez na América. Inicialmente pensado para ser o segundo volume de uma abortada trilogia dos "Era uma Vez" (deveria se chamar Era uma Vez na Revolução), o filme abre uma problemática completamente distinta na obra de Leone, que confere ao filme um tom muito particular, sem referente na filmografia anterior e, mesmo que prepare o canto-de-cisne que foi ...América, não tem comum medida com este. Estamos aqui em terreno pantanoso: é claro que ser "Sergio Leone" em 1971 significa entregar ao público uma série de cenas cheias de espalhafato visual, algum humor sorvete-na-testa, além de um pastiche divertido e reverente ao western americano. Mal comparando, algo como as telas de Andy Warhol. Ora, Quando Explode a Vingança inicia um outro programa, um programa que não é exatamente aquele que os ferrenhos fãs esperam de seu ídolo. Leone confisca aqui esse prazer primário que implica num certo narcisismo do plano. As imagens não se esgotam mais em si mesmas, mas remetem a um mundo em que o adverso se faz presente: diante da morte, o sangue não é só um tom de vermelho, mas o sangue mesmo. Cães de Aluguel vira Jackie Brown (não à toa, o terceiro filme de Quentin Tarantino teve recepção tão semelhante, consideradas as devidas proporções, ao penúltimo de Leone).

O começo poderia nos enganar. Um homem, aliás Rod Steiger (interpretando aqui o mexicano Juan), pede carona a um condutor de carruagem de luxo. Depois de jogar seu sanduíche num chão empoeirado, o condutor deixa que ele entre no veículo. Dentro, ele é novamente humilhado, dessa vez por membros da nobreza que consideram-no um animal: veste trapos, procria sem saber quantos filhos tem, em quantas mulheres fez filhos ou quem é seu pai. Ironia leoniana: pouco à frente, só o tempo necessário para que os comentários ofensivos dêem voltas pela cabeça de um Juan filmado em close, a horda de filhos naturais do indesejável e maltrapilho carona assalta a carruagem, mata os cocheiros, despe os nobres e desaloja-os da carruagem. Um pouco mais à frente do percurso, Juan e sua família de bandoleiros encontrará James Coburn, aliás John, um perito em explosivos da guerra irlandesa. Os dois homens desenvolverão uma relação de mútua dependência – mais tarde transformada em amizade – muito comum nos filmes de Leone. Juntos, farão um plano para conquistar um banco, mas – surpresa! – ao invés do dinheiro, Juan só encontra prisioneiros de guerra.

A primeira metade de Quando Explode a Vingança, tão cheia de humor e dos jogos de gato e rato que estamos acostumados a ver quando se trata de Leone, já avança ao menos um tema novo: a injustiça social e a participação política. Juan que faz de seu banditismo uma forma de luta social (desprover os ricos) não confia nas revoluções, ao passo que John tenta fazer no México a vitória revolucionária que não conseguiu realizar em seu país (estamos no final dos anos 10, na Revolução Mexicana de Pancho Villa e Huerta). Mas o próprio filme, até sua metade, não se distingue muito de um filme como Meu Ódio Será Sua Herança, em que homens com forte senso individualista realizam bravatas em nome de um sem-sentido generalizado do mundo. Quando, no entanto, a câmera deixa o sol e adentra a caverna, não é só o filme mas a carreira inteira de Sergio Leone que muda. Após a cena do bombardeio da ponte, uma elipse nos joga direto no massacre realizado pelas forças de Huerta. Lá, os amigos John e Juan contemplam inertes todos os seus companheiros e familiares mortos e empilhados uns em cima dos outros. Nesse instante, Juan precipita-se para fora da caverna, mas a câmera, prostrada e incapaz de sair da caverna transformada em depósito de mortos, fixa-se em John, que ouve a metralhadora de Juan disparando até que o mexicano é finalmente preso pelas forças do inimigo.

A partir daí, Quando Explode a Vingança deixa de ser um grande filme e passa a ser uma das coisas mais belas jamais feitas no cinema. Quando as forças revolucionárias capitulam, o filme passa a mostrar apenas estilhaços do que foi. O fio narrativo toma a liberdade de perder-se um pouco, e as cenas se acavalam como blocos de derrota. É aí que o passado de John, reiterativo sob a forma de flashbacks que servem como refrão no filme, adentra o presente através da música que continua mesmo depois que o flashback acaba, e a figura pétrea de James Coburn observa o líder revolucionário interpretado por Romolo Valli, pálido e no banco de carona dos inimigos, denunciando seus colegas e, conseqüentemente, levando-os ao fuzilamento. O bloco de presente e passado que este momento instaura, assim como a relação de espelhamento entre um instante de covardia passado, individual, e outro que ocorre naquele instante, coletivo, já demarca uma nítida diferença de registro: uma morte na tela não é só um divertido tiro-ao-alvo, ela é um gesto baseado em decisões de pessoas que tiram a vida de outras pessoas.

Leone, cineasta especulativo. Até seu fim, Quando Explode a Vingança transborda de ambigüidades, de discursos que são tudo menos prontos e fáceis (James Coburn concede a possibilidade de um final heróico a Romolo Valli, Rod Steiger que continua sem acreditar no poder de mudança das revoluções), mas acima de tudo de questionamento sobre o gesto que funda o western: a western is a man and a gun. Quando confrontado pelo acaso com o homem que liderou a chacina de toda sua família, Juan demora para ter qualquer movimento. E, quando decide agir, não é sem conseqüências. Depois do revólver disparado, Juan olha abobado para a arma: é isso que mata pessoas? E essa mão que carrega a arma, é uma mão de pessoa essa mão que carrega arma que matam pessoas? Depois que essa mão mata uma pessoa, ela continua sendo uma mão? A única condição segundo a qual Juan poderá conviver com sua própria mão – e convém aqui lembrar que é a mão de um bandido com muito mais do que uma morte na contagem de corpos – é sacudindo-a, limpando-a nas calças, para que o tempo aos poucos apague a marca da ação.

História, mudança, injustiça, responsabilidade moral, dilemas éticos, passado traumatizante que se instala no presente. Um filme que leva a sério tudo isso jamais poderia ser feito por um diretor a quem se atribui ligeiramente demais a característica de individualista e irresponsável por tomar somente pelo lado cômico ações humanas complicadas demais para se fazer graça com elas (pulemos também a duvidosa expressão "escapista", com a qual já se fechou os olhos para tantos grandes diretores, de John Carpenter a Jacques Tourneur). Quando Explode a Vingança joga uma luz completamente nova nos filmes de Sergio Leone, permitindo ver nele um esteta, sim, mas um esteta que pensa eticamente as imagens que filma, monta e exibe, um cineasta que não se compraz do espetáculo que monta (ao contrário de uma espectatorialidade pobre de seus filmes que, essa existe e ainda é bem viva), mas que faz com que seus temas vão até o fim. Não ao fim da história propriamente dita – Quando Explode a Vingança, por exemplo, termina no meio, sem verdadeiramente terminar –, mas ao limite de seus personagens, que é muitas vezes a própria morte. Menos cinismo e mais desespero por viver num mundo de contrastes, onde o que impulsiona a convivência entre os homens é o dinheiro – e convém lembrar que é a luta por dinheiro, nua e crua, sem subterfúgios, que constitui toda a trama de quase todos seus filmes –, essa é a ala inteira que Sergio Leone constrói com Quando Explode a Vingança num castelo que é sua obra completa, contando apenas com oito flmes. Quando Explode a Vingança se abisma com o que constitui um instante da História: qual é a verdade daquilo que sairá no papel, qual é o poder das revoluções na melhoria da vida dos pobres, que não passam de massa de manobra e corpos lacerados numa guerra, qual é a força de cada gesto humano para sempre em nossas vidas? Leone não responde a nenhuma dessas perguntas: ele prefere deixar o peso delas para nós. Viva ele.


Ruy Gardnier
http://www.contracampo.com.br/64/giulatesta.htm

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