De todos os grandes filmes de Sergio Leone, Quando
Explode a Vingança é de longe o mais
desconhecido. Lançado em vídeo no Brasil
em versão dublada com quase quinze minutos a
menos do que seu tamanho original, raramente exibido
na televisão e contando muito pouco com a repercussão
que tiveram tanto a trilogia como os Era uma Vez...,
o filme existe um pouco como um buraco negro na carreira
do cineasta. Mesmo quando visto, Quando Explode a
Vingança é muitas vezes mal compreendido.
Filme de transição, esta penúltima
obra de Sergio Leone é comumente recebida com
ressalvas quanto ao tom, e sofre da comparação
bastante injusta com os filmes pregressos do diretor.
Injusta não porque o filme não se sustentaria
diante de Três Homens em Conflito ou Era
um Vez no Oeste. Injusta sobretudo porque Leone
entra, com Quando Explode a Vingança,
em outra fase de carreira, auto-interrogativa e em modo
reflexivo. Não que a estilização
de ...Oeste ou as intrincadas relações
entre os protagonistas da trilogia suma: essas características
presentes por toda a obra de Leone – e, convenhamos,
já excessivamente lembradas quando se resolve
falar sobre o cineasta – aqui ganham uma maior densidade,
se complexificam, e o que antes existia em valor icônico
(a fruição paródica e referencial
do estilo comendo o próprio rabo e "se observando
morrer", como dizia Serge Daney a propósito
de Era uma Vez no Oeste) readquire características
de símbolo: já há um mundo palpável
ao contrário do papelão, já há
um contexto que impele os heróis a agir, já
há a densidade da História que, mesmo
se prestando a tessituras equívocas – como atribuir
a um gesto fracassado de bandidagem a pecha de heroísmo
de guerra –, mostra suas sendas e se imprime na carne
e nas decisões das pessoas. E, talvez acima de
tudo, há um passado. Um verdadeiro passado que,
como tal, nunca passa.
Quando Explode a Vingança é um
filme que explica perfeitamente a passagem de Era
uma Vez no Oeste para Era uma vez na América.
Inicialmente pensado para ser o segundo volume de uma
abortada trilogia dos "Era uma Vez" (deveria
se chamar Era uma Vez na Revolução),
o filme abre uma problemática completamente distinta
na obra de Leone, que confere ao filme um tom muito
particular, sem referente na filmografia anterior e,
mesmo que prepare o canto-de-cisne que foi ...América,
não tem comum medida com este. Estamos aqui em
terreno pantanoso: é claro que ser "Sergio
Leone" em 1971 significa entregar ao público
uma série de cenas cheias de espalhafato visual,
algum humor sorvete-na-testa, além de um pastiche
divertido e reverente ao western americano. Mal comparando,
algo como as telas de Andy Warhol. Ora, Quando Explode
a Vingança inicia um outro programa, um programa
que não é exatamente aquele que os ferrenhos
fãs esperam de seu ídolo. Leone confisca
aqui esse prazer primário que implica num certo
narcisismo do plano. As imagens não se esgotam
mais em si mesmas, mas remetem a um mundo em que o adverso
se faz presente: diante da morte, o sangue não
é só um tom de vermelho, mas o sangue
mesmo. Cães de Aluguel vira Jackie
Brown (não à toa, o terceiro filme
de Quentin Tarantino teve recepção tão
semelhante, consideradas as devidas proporções,
ao penúltimo de Leone).
O começo poderia nos enganar. Um homem, aliás
Rod Steiger (interpretando aqui o mexicano Juan), pede
carona a um condutor de carruagem de luxo. Depois de
jogar seu sanduíche num chão empoeirado,
o condutor deixa que ele entre no veículo. Dentro,
ele é novamente humilhado, dessa vez por membros
da nobreza que consideram-no um animal: veste trapos,
procria sem saber quantos filhos tem, em quantas mulheres
fez filhos ou quem é seu pai. Ironia leoniana:
pouco à frente, só o tempo necessário
para que os comentários ofensivos dêem
voltas pela cabeça de um Juan filmado em close,
a horda de filhos naturais do indesejável e maltrapilho
carona assalta a carruagem, mata os cocheiros, despe
os nobres e desaloja-os da carruagem. Um pouco mais
à frente do percurso, Juan e sua família
de bandoleiros encontrará James Coburn, aliás
John, um perito em explosivos da guerra irlandesa. Os
dois homens desenvolverão uma relação
de mútua dependência – mais tarde transformada
em amizade – muito comum nos filmes de Leone. Juntos,
farão um plano para conquistar um banco, mas
– surpresa! – ao invés do dinheiro, Juan só
encontra prisioneiros de guerra.
A primeira metade de Quando Explode a Vingança,
tão cheia de humor e dos jogos de gato e rato
que estamos acostumados a ver quando se trata de Leone,
já avança ao menos um tema novo: a injustiça
social e a participação política.
Juan que faz de seu banditismo uma forma de luta social
(desprover os ricos) não confia nas revoluções,
ao passo que John tenta fazer no México a vitória
revolucionária que não conseguiu realizar
em seu país (estamos no final dos anos 10, na
Revolução Mexicana de Pancho Villa e Huerta).
Mas o próprio filme, até sua metade, não
se distingue muito de um filme como Meu Ódio
Será Sua Herança, em que homens com
forte senso individualista realizam bravatas em nome
de um sem-sentido generalizado do mundo. Quando, no
entanto, a câmera deixa o sol e adentra a caverna,
não é só o filme mas a carreira
inteira de Sergio Leone que muda. Após a cena
do bombardeio da ponte, uma elipse nos joga direto no
massacre realizado pelas forças de Huerta. Lá,
os amigos John e Juan contemplam inertes todos os seus
companheiros e familiares mortos e empilhados uns em
cima dos outros. Nesse instante, Juan precipita-se para
fora da caverna, mas a câmera, prostrada e incapaz
de sair da caverna transformada em depósito de
mortos, fixa-se em John, que ouve a metralhadora de
Juan disparando até que o mexicano é finalmente
preso pelas forças do inimigo.
A partir daí, Quando Explode a Vingança
deixa de ser um grande filme e passa a ser uma das coisas
mais belas jamais feitas no cinema. Quando as forças
revolucionárias capitulam, o filme passa a mostrar
apenas estilhaços do que foi. O fio narrativo
toma a liberdade de perder-se um pouco, e as cenas se
acavalam como blocos de derrota. É aí
que o passado de John, reiterativo sob a forma de flashbacks
que servem como refrão no filme, adentra
o presente através da música que continua
mesmo depois que o flashback acaba, e a figura
pétrea de James Coburn observa o líder
revolucionário interpretado por Romolo Valli,
pálido e no banco de carona dos inimigos, denunciando
seus colegas e, conseqüentemente, levando-os ao
fuzilamento. O bloco de presente e passado que este
momento instaura, assim como a relação
de espelhamento entre um instante de covardia passado,
individual, e outro que ocorre naquele instante, coletivo,
já demarca uma nítida diferença
de registro: uma morte na tela não é só
um divertido tiro-ao-alvo, ela é um gesto baseado
em decisões de pessoas que tiram a vida de outras
pessoas.
Leone, cineasta especulativo. Até seu fim, Quando
Explode a Vingança transborda de ambigüidades,
de discursos que são tudo menos prontos e fáceis
(James Coburn concede a possibilidade de um final heróico
a Romolo Valli, Rod Steiger que continua sem acreditar
no poder de mudança das revoluções),
mas acima de tudo de questionamento sobre o gesto que
funda o western: a western is a man and a gun.
Quando confrontado pelo acaso com o homem que liderou
a chacina de toda sua família, Juan demora para
ter qualquer movimento. E, quando decide agir, não
é sem conseqüências. Depois do revólver
disparado, Juan olha abobado para a arma: é isso
que mata pessoas? E essa mão que carrega a arma,
é uma mão de pessoa essa mão que
carrega arma que matam pessoas? Depois que essa mão
mata uma pessoa, ela continua sendo uma mão?
A única condição segundo a qual
Juan poderá conviver com sua própria mão
– e convém aqui lembrar que é a mão
de um bandido com muito mais do que uma morte na contagem
de corpos – é sacudindo-a, limpando-a nas calças,
para que o tempo aos poucos apague a marca da ação.
História, mudança, injustiça, responsabilidade
moral, dilemas éticos, passado traumatizante
que se instala no presente. Um filme que leva a sério
tudo isso jamais poderia ser feito por um diretor a
quem se atribui ligeiramente demais a característica
de individualista e irresponsável por tomar somente
pelo lado cômico ações humanas complicadas
demais para se fazer graça com elas (pulemos
também a duvidosa expressão "escapista",
com a qual já se fechou os olhos para tantos
grandes diretores, de John Carpenter a Jacques Tourneur).
Quando Explode a Vingança joga uma luz
completamente nova nos filmes de Sergio Leone, permitindo
ver nele um esteta, sim, mas um esteta que pensa eticamente
as imagens que filma, monta e exibe, um cineasta que
não se compraz do espetáculo que monta
(ao contrário de uma espectatorialidade pobre
de seus filmes que, essa existe e ainda é bem
viva), mas que faz com que seus temas vão até
o fim. Não ao fim da história propriamente
dita – Quando Explode a Vingança, por
exemplo, termina no meio, sem verdadeiramente terminar
–, mas ao limite de seus personagens, que é muitas
vezes a própria morte. Menos cinismo e mais desespero
por viver num mundo de contrastes, onde o que impulsiona
a convivência entre os homens é o dinheiro
– e convém lembrar que é a luta por dinheiro,
nua e crua, sem subterfúgios, que constitui toda
a trama de quase todos seus filmes –, essa é
a ala inteira que Sergio Leone constrói com Quando
Explode a Vingança num castelo que é
sua obra completa, contando apenas com oito flmes. Quando
Explode a Vingança se abisma com o que constitui
um instante da História: qual é a verdade
daquilo que sairá no papel, qual é o poder
das revoluções na melhoria da vida dos
pobres, que não passam de massa de manobra e
corpos lacerados numa guerra, qual é a força
de cada gesto humano para sempre em nossas vidas? Leone
não responde a nenhuma dessas perguntas: ele
prefere deixar o peso delas para nós. Viva ele.
Ruy Gardnier
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