segunda-feira, 7 de maio de 2018


Paixão pela ignorância


19/10/2017 - 19H41 - Por Clotilde Perez

Ilustração coluna Sentidos do Habitar - outubro de 2017 (Foto: Ilustração Fabio Issao / Editora Globo)
Paixão é um sentimento intenso, entusiasmo desenfreado, arrebatamento que nos move em direção a algo ou alguém. E toda paixão implica neutralizar as diferenças. A paixão pelo amor pretende a fusão com o amado: tornarem-se um. A paixão pelo ódio intenciona o apagamento do que ou quem se odeia, assim como a paixão pela ignorância busca aplacar o conhecido ou mesmo a “mera possibilidade” de sua existência. Neste momento vamos nos dedicar à paixão pela ignorância. Mais do que o não saber, que não é o objeto desta reflexão, vamos abordar aqui a opção deliberada pelo não querer saber.


A ignorância impõe a condição da alienação e sua manutenção revela, na verdade, a ânsia desesperada por não querermos saber de nós mesmos, do que nos move, dos nossos quereres e dos nossos desejos. Renunciamos a tudo para que não tenhamos que nos implicar conosco e com os outros. Jogar nas mãos do outro, deixar que alguém diga e faça por nós mesmos é um bálsamo, porque seguir nosso próprio desejo dá trabalho, dói e tem consequências. Saber quem somos e o que desejamos é coisa para fortes. Implica angústia, estratégia de superação e responsabilidade. Melhor não saber? Depende. O pensamento contemporâneo é um convite cotidiano à renúncia do pensar, ao não saber, à ignorância, ao obscurantismo... Até porque se pauta no prazer imediato, irrestrito, profundo e “eterno”. Saber impõe o confrontamento com as diferenças, incoerências e contrastes acerca do que somos e do que queremos. Nesse sentido, parece melhor sermos ignorantes; como nas palavras do amigo, psicanalista e inspirador destas reflexões Claudio Montoto sobre a súplica matinal e bem-humorada dos dias de hoje: “Deus me converta em um protozoário para eu não ter de pensar!”.

No entanto, o não saber nos impõe uma condição de existência vaga, errante, flutuante, não no sentido da leveza, que seria ótimo, mas na incapacidade de deixarmos marcas, rastros do nosso percurso, dos nossos afetos e projetos. A paixão pela ignorância fere e aniquila o sentido da vida, que sempre e antes de tudo é o conhecimento: de si mesmo, do que nos cerca e, principalmente, do outro, daquele a quem podemos chamar “semelhante”. Eu quero mais é saber, viva a lucidez!

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Clotilde Perez (Foto: Jennifer Koo / Divulgação)
Clotilde Perez (cloperez@terra.com.br) é semioticista, professora da USP e da PUC-SP, e fundadora da Casa Semio

 https://revistacasaejardim.globo.com/Casa-e-Jardim/Colunistas/noticia/2017/10/paixao-pela-ignorancia.html

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