quinta-feira, 20 de março de 2014

Quando descobri que não era ocidental

 

08/12/2012 | 08:26 | Mulheres pelo Mundo | Atualidades |

Vivendo e aprendendo. A jornalista Gisela Anauate, que mora na França, onde faz doutorado em literatura, acaba de sofrer um abalo em sua identidade.

Esta semana, numa conversa entre brasileiros num bar em Paris, uma menina me perguntou o que eu achava do fato de não ser ocidental. Entendi na hora a pergunta. Já havia passado por esta terrível descoberta há pouco mais de três anos, quando me mudei para a Europa para fazer mestrado.  Alguns textos que lia e certos comentários que ouvia de professores davam a entender que o que os europeus entendiam por Ocidente não incluía a América Latina. Isso me deixou confusa. Do ponto de vista estritamente geográfico, me parecia claro que o Brasil ficava na parte ocidental do mundo. Mas obviamente o que estava em jogo não era o quão longe ficamos do Japão no mapa mundi, mas uma ideia de civilização e de cultura. O que ainda me parecia absurdo. “Tenho que te contar algo”, disse ao meu marido. “Acho que eu e você não somos ocidentais”. Depois de entender que eu não estava inventando uma forma estapafúrdia de discussão da relação intelectualizada, ele me tranquilizou dizendo que éramos ocidentais, sim. Afinal, o Brasil foi colonizado por Portugal e a nossa cultura sempre teve e continua a ter uma relação estreita com as culturas europeias. Não fazemos parte de outra civilização que tenha se construído paralelamente à ocidental, como a China. Palavra de historiador.
Porém, continuei encafifada. A prova se revelou na biblioteca, enquanto estudava um livro de teoria literária em que um respeitado professor italiano opunha claramente a “literatura ocidental” (leia-se europeia e norte-americana) à “literatura latino-americana”. Dei um gritinho selvagem que deve ter assustado os ocupantes ocidentais da biblioteca.
Ser da América latina ou da América do Sul é naturalíssimo, o que me incomoda é não poder ser também ocidental. Como assim, dividem o mundo em Ocidente e Oriente e a gente lá no Brasil fica sem nenhuma fatia do bolo? E o pior: os europeus viajaram, colonizaram terras distantes, mataram um monte de índios, impuseram suas línguas e suas culturas e agora dizem que não têm nada a ver com isso? Calma lá.  A gente é Ocidente, sim, e por culpa deles! Curioso como os norte-americanos, que, assim como nós, são filhos de imigrantes e escravos, gozam do status de ocidentais sem a menor titubeação por parte dos europeus…
Sim, temos especificidades brasileiras – e uma das mais interessantes é o mix de povos que nos constituíram. Mas incrivelmente a Europa multicultural de hoje ainda tem dificuldade de entender isso: muitos europeus (inclusive alguns bem instruídos) esperam sempre que os brasileiros deem demonstrações de exotismo tropical-sambístico-futebolístico e nunca lembram que a nossa cultura deriva também da cultura deles. Não estou falando só de uma visão do Brasil como paraíso das férias para gringos, mas da forma restrita como muitos europeus enxergam (na verdade, imaginam) nossa produção cultural e intelectual. Tenho a impressão de que se eu mudasse o título da minha tese de doutorado para “Vai, Brasil: Um estudo da ginga na técnica do enjambement usada na poesia contemporânea brasileira sob os auspícios do caudilhismo neo-barroco”, eu ia ganhar um prêmio antes mesmo de começar a escrever. Ou será que eu devia compor um samba?

http://colunas.revistaepoca.globo.com/mulher7por7/2012/12/08/quando-descobri-que-nao-era-ocidental/

 

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