Contra a moral, a religião e a filosofia
Por Ricardo Musse.
Comemoramos
neste ano o centenário do nascimento de Albert Camus. Aproveitando a
ocasião, redigi um breve comentário sobre seu principal livro, o romance
O estrangeiro.
Em O estrangeiro,
a morte está sempre presente. Ela determina os limites da narração que
começa com a morte da mãe do personagem e termina com a aurora do dia de
sua execução. É sob seu signo que ocorrem os três acontecimentos
cruciais do livro, condensados, por ocasião do julgamento, numa unidade:
o enterro da mãe, o assassinato do árabe e a condenação à morte de
Meursault. É, portanto, a partir dela, na expectativa de apreender a
concepção própria de Camus acerca da morte, ou melhor, da vida e do
“absurdo”, que convém interrogar o livro.
Primeiro
cabe indagar acerca do caráter inexplicável do personagem principal. Aos
nossos olhos – e no interior do mundo diegético –, aos olhos dos que o
julgaram, aos olhos de sua amante e, às vezes, mesmo perante seus olhos,
Meursault é um estrangeiro. Mas também é um estranho que nos é próximo,
pois comungamos seu alheamento, sua “inocência”, sua cegueira. São
traços que decorrem da própria condição humana, da separação entre o
homem e sua vida, entre o ator e o cenário, do confronto entre o apelo
humano e o silêncio irracional do mundo, ou ainda, do “divórcio entre as
aspirações do homem em direção à unidade e o dualismo insuplantável de
espírito e natureza, entre o elã do homem rumo ao eterno e o caráter finito de sua existência” (Sartre).
Mas, se
todos nós estamos sujeitos ao acaso, ao pluralismo irredutível dos
significados, à ininteligibilidade do real, à morte, isto é, às diversas
faces do absurdo, Meursault nos é incompreensível exatamente porque, um
passo à nossa frente, ele possui a nítida compreensão de que seu eu não
se confunde com o mundo. Ser à parte, estrangeiro, ele é tão só o homem
posto frente ao mundo e, portanto, situado num universo privado de
ilusões e de esclarecimentos, num exílio sem saída, carente tanto das
lembranças de uma pátria perdida quanto da esperança de uma terra
prometida. Adquiriu, por conseguinte, a lúcida consciência do absurdo da
existência humana.
Assim
definida, a consciência do absurdo é pensada por Camus como o oposto da
filosofia socrática. Ela não deve ensinar os homens a morrer, mas a
viver. Ela não conduz a nenhuma forma de consolo, mas repelindo a
servidão, gera um estado de permanente revolta. Ela não se assenta em
nenhuma moral de renúncia, de resignação, mas numa “paixão do absurdo”,
sob a qual tudo é permitido.
O personagem de L’étranger, porém, não se confunde com o homem revoltado que Camus esboça em O mito de Sísifo,
da mesma forma que o romance não se situa no mesmo terreno que a
filosofia. Enquanto esta procura explicar e demonstrar por meio de uma
confrontação, de uma comparação, a ideia de absurdo, o romance
simplesmente descreve, inspirando indignação, o sentimento do absurdo.
Esta
descrição, entretanto, não é aleatória, não é o puro relato de
experiências equivalentes, quantitativas que, segundo Camus,
caracterizam a vida do homem absurdo. É possível detectar ao longo do
romance uma direção, um vetor que orienta a narração. Esta se estrutura
como um relato de “formação” – como uma espécie de fenomenologia – da
consciência acerca da morte.
A narrativa é
composta, portanto, numa gradação, por experiências qualitativamente
diferentes. O absurdo é descrito no livro deste a primeira frase.
Meursault, porém, só se torna um “homem revoltado”, abandonando sua
“tranquilidade”, seu estado passivo, num momento preciso, no final do
romance.
É verdade
que não há uma experiência da morte, pois só há experiência, em sentido
próprio, daquilo que foi vivido e tornado consciente. Mas há
aproximações, situações em que a morte apresenta-se, não como um limite,
mas como algo presente, como algo que toca a consciência. É quando se
desmorona o nosso modo de agir cotidiano, o hábito de viver ignorando
sua presença e sua realidade.
A primeira
aproximação à morte no romance, cronológica e lógica, é a morte da mãe e
a simbologia – velório, enterro – que a cerca. O horror desse fato, no
entanto, não foi suficiente para convencer Meursault da efetividade da
morte. Ele sente, no máximo, uma sensação de perda que, aliás, nem se
manifesta no momento, mas inesperadamente, depois de tudo acabado.
Tampouco o
crime, a morte do outro, concretizada por intermédio de um gesto seu,
mostrou-se suficiente para persuadi-lo. A sensação de ser culpado
significa para ele apenas que deve pagar por isso. Somente a perspectiva
da própria morte, a certeza de que – após a recusa do último recurso – a
condenação é inescapável, o leva à compreensão da morte, a adquirir
consciência de seu caráter irremediável.
A morte,
nesse sentido, diz ele, consiste na “única coisa verdadeiramente
interessante para um homem”. Compreensão, aqui, porém, não significa
aceitação, resignação. Ao contrário, só essa compreensão lhe permite
vivenciar, em toda a sua força, o absurdo da existência. Ele acede aí à
disponibilidade perfeita, à privação de esperança e de futuro, que nos é
dada pela consciência da vida absurda. É, portanto, a condenação à
morte, a certeza inabalável da proximidade da morte que fornece a
Meursault a possibilidade de se revoltar. Só esta aproximação o leva a
suplantar a passividade, a indiferença e o conduz a uma revolta tenaz
contra sua condição, a uma ausência de esperança e a uma insatisfação
consciente.
A revolta
assume, então, uma dupla face: revolta contra a realidade da morte, mas
também revolta contra o que diz o capelão, contra as mensagens daqueles
que pregam a renúncia. Revolta, em suma, contra a moral, a religião e a
filosofia que procuram consolar e o impede de opor-se, de negar, de
rebelar-se. Assim, é só no final, após o diálogo com o capelão, que
Meursault, uma vez completa a sua “formação”, pode ser comparado a
Sísifo em seu desprezo pelos deuses, em seu ódio à morte e paixão pela
vida.
Referências bibliográficas
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008.
CAMUS, Albert, O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. Situações I: Críticas literárias. Tradução: Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
***
Ricardo Musse
é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor
em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório
de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
Contra a moral, a religião e a filosofia
Por Ricardo Musse.
Comemoramos
neste ano o centenário do nascimento de Albert Camus. Aproveitando a
ocasião, redigi um breve comentário sobre seu principal livro, o romance
O estrangeiro.
Em O estrangeiro,
a morte está sempre presente. Ela determina os limites da narração que
começa com a morte da mãe do personagem e termina com a aurora do dia de
sua execução. É sob seu signo que ocorrem os três acontecimentos
cruciais do livro, condensados, por ocasião do julgamento, numa unidade:
o enterro da mãe, o assassinato do árabe e a condenação à morte de
Meursault. É, portanto, a partir dela, na expectativa de apreender a
concepção própria de Camus acerca da morte, ou melhor, da vida e do
“absurdo”, que convém interrogar o livro.
Primeiro
cabe indagar acerca do caráter inexplicável do personagem principal. Aos
nossos olhos – e no interior do mundo diegético –, aos olhos dos que o
julgaram, aos olhos de sua amante e, às vezes, mesmo perante seus olhos,
Meursault é um estrangeiro. Mas também é um estranho que nos é próximo,
pois comungamos seu alheamento, sua “inocência”, sua cegueira. São
traços que decorrem da própria condição humana, da separação entre o
homem e sua vida, entre o ator e o cenário, do confronto entre o apelo
humano e o silêncio irracional do mundo, ou ainda, do “divórcio entre as
aspirações do homem em direção à unidade e o dualismo insuplantável de
espírito e natureza, entre o elã do homem rumo ao eterno e o caráter finito de sua existência” (Sartre).
Mas, se
todos nós estamos sujeitos ao acaso, ao pluralismo irredutível dos
significados, à ininteligibilidade do real, à morte, isto é, às diversas
faces do absurdo, Meursault nos é incompreensível exatamente porque, um
passo à nossa frente, ele possui a nítida compreensão de que seu eu não
se confunde com o mundo. Ser à parte, estrangeiro, ele é tão só o homem
posto frente ao mundo e, portanto, situado num universo privado de
ilusões e de esclarecimentos, num exílio sem saída, carente tanto das
lembranças de uma pátria perdida quanto da esperança de uma terra
prometida. Adquiriu, por conseguinte, a lúcida consciência do absurdo da
existência humana.
Assim
definida, a consciência do absurdo é pensada por Camus como o oposto da
filosofia socrática. Ela não deve ensinar os homens a morrer, mas a
viver. Ela não conduz a nenhuma forma de consolo, mas repelindo a
servidão, gera um estado de permanente revolta. Ela não se assenta em
nenhuma moral de renúncia, de resignação, mas numa “paixão do absurdo”,
sob a qual tudo é permitido.
O personagem de L’étranger, porém, não se confunde com o homem revoltado que Camus esboça em O mito de Sísifo,
da mesma forma que o romance não se situa no mesmo terreno que a
filosofia. Enquanto esta procura explicar e demonstrar por meio de uma
confrontação, de uma comparação, a ideia de absurdo, o romance
simplesmente descreve, inspirando indignação, o sentimento do absurdo.
Esta
descrição, entretanto, não é aleatória, não é o puro relato de
experiências equivalentes, quantitativas que, segundo Camus,
caracterizam a vida do homem absurdo. É possível detectar ao longo do
romance uma direção, um vetor que orienta a narração. Esta se estrutura
como um relato de “formação” – como uma espécie de fenomenologia – da
consciência acerca da morte.
A narrativa é
composta, portanto, numa gradação, por experiências qualitativamente
diferentes. O absurdo é descrito no livro deste a primeira frase.
Meursault, porém, só se torna um “homem revoltado”, abandonando sua
“tranquilidade”, seu estado passivo, num momento preciso, no final do
romance.
É verdade
que não há uma experiência da morte, pois só há experiência, em sentido
próprio, daquilo que foi vivido e tornado consciente. Mas há
aproximações, situações em que a morte apresenta-se, não como um limite,
mas como algo presente, como algo que toca a consciência. É quando se
desmorona o nosso modo de agir cotidiano, o hábito de viver ignorando
sua presença e sua realidade.
A primeira
aproximação à morte no romance, cronológica e lógica, é a morte da mãe e
a simbologia – velório, enterro – que a cerca. O horror desse fato, no
entanto, não foi suficiente para convencer Meursault da efetividade da
morte. Ele sente, no máximo, uma sensação de perda que, aliás, nem se
manifesta no momento, mas inesperadamente, depois de tudo acabado.
Tampouco o
crime, a morte do outro, concretizada por intermédio de um gesto seu,
mostrou-se suficiente para persuadi-lo. A sensação de ser culpado
significa para ele apenas que deve pagar por isso. Somente a perspectiva
da própria morte, a certeza de que – após a recusa do último recurso – a
condenação é inescapável, o leva à compreensão da morte, a adquirir
consciência de seu caráter irremediável.
A morte,
nesse sentido, diz ele, consiste na “única coisa verdadeiramente
interessante para um homem”. Compreensão, aqui, porém, não significa
aceitação, resignação. Ao contrário, só essa compreensão lhe permite
vivenciar, em toda a sua força, o absurdo da existência. Ele acede aí à
disponibilidade perfeita, à privação de esperança e de futuro, que nos é
dada pela consciência da vida absurda. É, portanto, a condenação à
morte, a certeza inabalável da proximidade da morte que fornece a
Meursault a possibilidade de se revoltar. Só esta aproximação o leva a
suplantar a passividade, a indiferença e o conduz a uma revolta tenaz
contra sua condição, a uma ausência de esperança e a uma insatisfação
consciente.
A revolta
assume, então, uma dupla face: revolta contra a realidade da morte, mas
também revolta contra o que diz o capelão, contra as mensagens daqueles
que pregam a renúncia. Revolta, em suma, contra a moral, a religião e a
filosofia que procuram consolar e o impede de opor-se, de negar, de
rebelar-se. Assim, é só no final, após o diálogo com o capelão, que
Meursault, uma vez completa a sua “formação”, pode ser comparado a
Sísifo em seu desprezo pelos deuses, em seu ódio à morte e paixão pela
vida.
Referências bibliográficas
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008.
CAMUS, Albert, O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. Situações I: Críticas literárias. Tradução: Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
***
Ricardo Musse
é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor
em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório
de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.
http://blogdaboitempo.com.br/2013/11/29/contra-a-moral-a-religiao-e-a-filosofia/
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