domingo, 22 de dezembro de 2013

Contra a moral, a religião e a filosofia

Comemoramos neste ano o centenário do nascimento de Albert Camus. Aproveitando a ocasião, redigi um breve comentário sobre seu principal livro, o romance O estrangeiro.
Em O estrangeiro, a morte está sempre presente. Ela determina os limites da narração que começa com a morte da mãe do personagem e termina com a aurora do dia de sua execução. É sob seu signo que ocorrem os três acontecimentos cruciais do livro, condensados, por ocasião do julgamento, numa unidade: o enterro da mãe, o assassinato do árabe e a condenação à morte de Meursault. É, portanto, a partir dela, na expectativa de apreender a concepção própria de Camus acerca da morte, ou melhor, da vida e do “absurdo”, que convém interrogar o livro.
Primeiro cabe indagar acerca do caráter inexplicável do personagem principal. Aos nossos olhos – e no interior do mundo diegético –, aos olhos dos que o julgaram, aos olhos de sua amante e, às vezes, mesmo perante seus olhos, Meursault é um estrangeiro. Mas também é um estranho que nos é próximo, pois comungamos seu alheamento, sua “inocência”, sua cegueira. São traços que decorrem da própria condição humana, da separação entre o homem e sua vida, entre o ator e o cenário, do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo, ou ainda, do “divórcio entre as aspirações do homem em direção à unidade e o dualismo insuplantável de espírito e natureza, entre o elã do homem rumo ao eterno e o caráter finito de sua existência” (Sartre).
Mas, se todos nós estamos sujeitos ao acaso, ao pluralismo irredutível dos significados, à ininteligibilidade do real, à morte, isto é, às diversas faces do absurdo, Meursault nos é incompreensível exatamente porque, um passo à nossa frente, ele possui a nítida compreensão de que seu eu não se confunde com o mundo. Ser à parte, estrangeiro, ele é tão só o homem posto frente ao mundo e, portanto, situado num universo privado de ilusões e de esclarecimentos, num exílio sem saída, carente tanto das lembranças de uma pátria perdida quanto da esperança de uma terra prometida. Adquiriu, por conseguinte, a lúcida consciência do absurdo da existência humana.
Assim definida, a consciência do absurdo é pensada por Camus como o oposto da filosofia socrática. Ela não deve ensinar os homens a morrer, mas a viver. Ela não conduz a nenhuma forma de consolo, mas repelindo a servidão, gera um estado de permanente revolta. Ela não se assenta em nenhuma moral de renúncia, de resignação, mas numa “paixão do absurdo”, sob a qual tudo é permitido.
O personagem de L’étranger, porém, não se confunde com o homem revoltado que Camus esboça em O mito de Sísifo, da mesma forma que o romance não se situa no mesmo terreno que a filosofia. Enquanto esta procura explicar e demonstrar por meio de uma confrontação, de uma comparação, a ideia de absurdo, o romance simplesmente descreve, inspirando indignação, o sentimento do absurdo.
Esta descrição, entretanto, não é aleatória, não é o puro relato de experiências equivalentes, quantitativas que, segundo Camus, caracterizam a vida do homem absurdo. É possível detectar ao longo do romance uma direção, um vetor que orienta a narração. Esta se estrutura como um relato de “formação” – como uma espécie de fenomenologia – da consciência acerca da morte.
A narrativa é composta, portanto, numa gradação, por experiências qualitativamente diferentes. O absurdo é descrito no livro deste a primeira frase. Meursault, porém, só se torna um “homem revoltado”, abandonando sua “tranquilidade”, seu estado passivo, num momento preciso, no final do romance.
É verdade que não há uma experiência da morte, pois só há experiência, em sentido próprio, daquilo que foi vivido e tornado consciente. Mas há aproximações, situações em que a morte apresenta-se, não como um limite, mas como algo presente, como algo que toca a consciência. É quando se desmorona o nosso modo de agir cotidiano, o hábito de viver ignorando sua presença e sua realidade.
A primeira aproximação à morte no romance, cronológica e lógica, é a morte da mãe e a simbologia – velório, enterro – que a cerca. O horror desse fato, no entanto, não foi suficiente para convencer Meursault da efetividade da morte. Ele sente, no máximo, uma sensação de perda que, aliás, nem se manifesta no momento, mas inesperadamente, depois de tudo acabado.
Tampouco o crime, a morte do outro, concretizada por intermédio de um gesto seu, mostrou-se suficiente para persuadi-lo. A sensação de ser culpado significa para ele apenas que deve pagar por isso. Somente a perspectiva da própria morte, a certeza de que – após a recusa do último recurso – a condenação é inescapável, o leva à compreensão da morte, a adquirir consciência de seu caráter irremediável.
A morte, nesse sentido, diz ele, consiste na “única coisa verdadeiramente interessante para um homem”. Compreensão, aqui, porém, não significa aceitação, resignação. Ao contrário, só essa compreensão lhe permite vivenciar, em toda a sua força, o absurdo da existência. Ele acede aí à disponibilidade perfeita, à privação de esperança e de futuro, que nos é dada pela consciência da vida absurda. É, portanto, a condenação à morte, a certeza inabalável da proximidade da morte que fornece a Meursault a possibilidade de se revoltar. Só esta aproximação o leva a suplantar a passividade, a indiferença e o conduz a uma revolta tenaz contra sua condição, a uma ausência de esperança e a uma insatisfação consciente.
A revolta assume, então, uma dupla face: revolta contra a realidade da morte, mas também revolta contra o que diz o capelão, contra as mensagens daqueles que pregam a renúncia. Revolta, em suma, contra a moral, a religião e a filosofia que procuram consolar e o impede de opor-se, de negar, de rebelar-se. Assim, é só no final, após o diálogo com o capelão, que Meursault, uma vez completa a sua “formação”, pode ser comparado a Sísifo em seu desprezo pelos deuses, em seu ódio à morte e paixão pela vida.
Referências bibliográficas
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008.
CAMUS, Albert, O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. Situações I: Críticas literárias. Tradução: Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
***
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

Contra a moral, a religião e a filosofia

Comemoramos neste ano o centenário do nascimento de Albert Camus. Aproveitando a ocasião, redigi um breve comentário sobre seu principal livro, o romance O estrangeiro.
Em O estrangeiro, a morte está sempre presente. Ela determina os limites da narração que começa com a morte da mãe do personagem e termina com a aurora do dia de sua execução. É sob seu signo que ocorrem os três acontecimentos cruciais do livro, condensados, por ocasião do julgamento, numa unidade: o enterro da mãe, o assassinato do árabe e a condenação à morte de Meursault. É, portanto, a partir dela, na expectativa de apreender a concepção própria de Camus acerca da morte, ou melhor, da vida e do “absurdo”, que convém interrogar o livro.
Primeiro cabe indagar acerca do caráter inexplicável do personagem principal. Aos nossos olhos – e no interior do mundo diegético –, aos olhos dos que o julgaram, aos olhos de sua amante e, às vezes, mesmo perante seus olhos, Meursault é um estrangeiro. Mas também é um estranho que nos é próximo, pois comungamos seu alheamento, sua “inocência”, sua cegueira. São traços que decorrem da própria condição humana, da separação entre o homem e sua vida, entre o ator e o cenário, do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo, ou ainda, do “divórcio entre as aspirações do homem em direção à unidade e o dualismo insuplantável de espírito e natureza, entre o elã do homem rumo ao eterno e o caráter finito de sua existência” (Sartre).
Mas, se todos nós estamos sujeitos ao acaso, ao pluralismo irredutível dos significados, à ininteligibilidade do real, à morte, isto é, às diversas faces do absurdo, Meursault nos é incompreensível exatamente porque, um passo à nossa frente, ele possui a nítida compreensão de que seu eu não se confunde com o mundo. Ser à parte, estrangeiro, ele é tão só o homem posto frente ao mundo e, portanto, situado num universo privado de ilusões e de esclarecimentos, num exílio sem saída, carente tanto das lembranças de uma pátria perdida quanto da esperança de uma terra prometida. Adquiriu, por conseguinte, a lúcida consciência do absurdo da existência humana.
Assim definida, a consciência do absurdo é pensada por Camus como o oposto da filosofia socrática. Ela não deve ensinar os homens a morrer, mas a viver. Ela não conduz a nenhuma forma de consolo, mas repelindo a servidão, gera um estado de permanente revolta. Ela não se assenta em nenhuma moral de renúncia, de resignação, mas numa “paixão do absurdo”, sob a qual tudo é permitido.
O personagem de L’étranger, porém, não se confunde com o homem revoltado que Camus esboça em O mito de Sísifo, da mesma forma que o romance não se situa no mesmo terreno que a filosofia. Enquanto esta procura explicar e demonstrar por meio de uma confrontação, de uma comparação, a ideia de absurdo, o romance simplesmente descreve, inspirando indignação, o sentimento do absurdo.
Esta descrição, entretanto, não é aleatória, não é o puro relato de experiências equivalentes, quantitativas que, segundo Camus, caracterizam a vida do homem absurdo. É possível detectar ao longo do romance uma direção, um vetor que orienta a narração. Esta se estrutura como um relato de “formação” – como uma espécie de fenomenologia – da consciência acerca da morte.
A narrativa é composta, portanto, numa gradação, por experiências qualitativamente diferentes. O absurdo é descrito no livro deste a primeira frase. Meursault, porém, só se torna um “homem revoltado”, abandonando sua “tranquilidade”, seu estado passivo, num momento preciso, no final do romance.
É verdade que não há uma experiência da morte, pois só há experiência, em sentido próprio, daquilo que foi vivido e tornado consciente. Mas há aproximações, situações em que a morte apresenta-se, não como um limite, mas como algo presente, como algo que toca a consciência. É quando se desmorona o nosso modo de agir cotidiano, o hábito de viver ignorando sua presença e sua realidade.
A primeira aproximação à morte no romance, cronológica e lógica, é a morte da mãe e a simbologia – velório, enterro – que a cerca. O horror desse fato, no entanto, não foi suficiente para convencer Meursault da efetividade da morte. Ele sente, no máximo, uma sensação de perda que, aliás, nem se manifesta no momento, mas inesperadamente, depois de tudo acabado.
Tampouco o crime, a morte do outro, concretizada por intermédio de um gesto seu, mostrou-se suficiente para persuadi-lo. A sensação de ser culpado significa para ele apenas que deve pagar por isso. Somente a perspectiva da própria morte, a certeza de que – após a recusa do último recurso – a condenação é inescapável, o leva à compreensão da morte, a adquirir consciência de seu caráter irremediável.
A morte, nesse sentido, diz ele, consiste na “única coisa verdadeiramente interessante para um homem”. Compreensão, aqui, porém, não significa aceitação, resignação. Ao contrário, só essa compreensão lhe permite vivenciar, em toda a sua força, o absurdo da existência. Ele acede aí à disponibilidade perfeita, à privação de esperança e de futuro, que nos é dada pela consciência da vida absurda. É, portanto, a condenação à morte, a certeza inabalável da proximidade da morte que fornece a Meursault a possibilidade de se revoltar. Só esta aproximação o leva a suplantar a passividade, a indiferença e o conduz a uma revolta tenaz contra sua condição, a uma ausência de esperança e a uma insatisfação consciente.
A revolta assume, então, uma dupla face: revolta contra a realidade da morte, mas também revolta contra o que diz o capelão, contra as mensagens daqueles que pregam a renúncia. Revolta, em suma, contra a moral, a religião e a filosofia que procuram consolar e o impede de opor-se, de negar, de rebelar-se. Assim, é só no final, após o diálogo com o capelão, que Meursault, uma vez completa a sua “formação”, pode ser comparado a Sísifo em seu desprezo pelos deuses, em seu ódio à morte e paixão pela vida.
Referências bibliográficas
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Tradução: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008.
CAMUS, Albert, O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. Situações I: Críticas literárias. Tradução: Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

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