Candidata do PSB tornou-se refém do fundamentalismo
Sexta-feira 5, setembro 2014
Hatoum: “A mudança do texto original [do programa de governo] por pressão de líderes religiosos foi lamentável”
Confira a seguir a conversa com o escritor Milton Hatoum:
Valor: Você iria votar em Marina e desistiu. O que houve?
Milton Hatoum: Votei nela no primeiro
turno em 2010. Este ano estava propenso a votar no candidato Eduardo
Campos, isso sim. Acho que ele era um político de centro-esquerda com
ideias para o Brasil, com liderança, não estava contaminado nem um pouco
por um discurso messiânico, religioso.
Valor: A questão religiosa gerou seu desencanto com Marina?
Hatoum: Achei até consistente o
programa de governo da Marina, embora muito vago em alguns aspectos, mas
quando eu li as alterações todas, feitas às pressas, vi que ela tinha
se tornado refém dos partidos religiosos fundamentalistas.
Valor: Foi aí que “desmarinou”?
Hatoum: Em três dias vimos que a
política pode mudar como as nuvens. A mudança do texto original por
pressão de líderes religiosos foi lamentável. Mas também teve a adesão
de velhas raposas da política brasileira à onda Marina nos últimos dias:
José Agripino Maia, fisiológicos do PMDB. Quando ela diz que vai
governar com os melhores isso não significa nada.
Valor: Você fala das possíveis alianças de Marina, mas era Eduardo Campos o responsável por elas.
Hatoum: Marina deu espaço demais [a
esses líderes evangélicos]. Ela se inspira em versículos bíblicos
aleatórios para tomar decisões. Isso é assustador, um retrocesso geral.
Ele [Campos] fazia costuras, mas não aceitava o PMDB, que já está se
aproximando da Marina, assim como outros políticos de caráter mais
duvidoso. Acho que ele teria mais força de fazer um filtro.
Valor: O PSDB se enfraqueceu.
Hatoum: Perdeu toda a força que
tinha no começo, o candidato Aécio Neves está perplexo, abatido com essa
virada. Me parece que a disputa está definida [Dilma e Marina], não as
eleições.
Valor: O PSDB fala que até 15 de setembro retomará o segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.
Hatoum: Acho difícil. O PT tem um
eleitorado muito cativo, quem vota no PT não vota em mais ninguém. Muita
gente que vai votar na Marina não quer mais polarização [PT-PSDB] e tem
muita gente que não pensa a política de forma reflexiva. Depois do
acidente surgiu um elemento de quase devoção pela Marina. O PSDB não
vira.
Valor: Essa devoção combina com a ideia de nova política?
Hatoum: Isso é chocante. Corremos o
risco de essa devoção, esse personalismo ser substituído por um espécie
de messianismo. Política não pode ser um ato consumado do plano divino,
não pode ser inspirada pela Bíblia ou qualquer outro texto sagrado,
porque o Estado laico se atrofia.
Valor: De novo a religião…
Hatoum: Repare na linguagem desse
pastor [Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em
Cristo]: disse que Aécio e Dilma não são malucos de defender temas como o
casamento gay, se eles fizerem isso o sarrafo vai comer. É a linguagem
do preconceito, da violência. É como chutar a imagem de uma santa
católica, incendiar um templo de candomblé no Rio de Janeiro. Ele falou
que o governo representará a maioria cristã da sociedade brasileira. Um
absurdo! E os judeus, budistas, católicos, os mais de 20 milhões de
agnósticos e ateus não estarão representados?
Valor: Não votar em Marina por ela ser evangélica é preconceito?
Hatoum: A questão é que a política não pode ser um ato consumado pelo poder divino.
“Velhas raposas aderiram à onda Marina; quando ela diz que vai governar com os melhores isso não significa nada”
Valor: Mas Marina é mais marcada pela religião do que seus adversários, não acha?
Hatoum: Ela é a mais marcada porque
tudo tem uma conexão com o plano divino. Deus não sai de seu discurso.
Eu acho isso estranho. Que os pastores digam isso, tudo bem, mas para um
candidato de um Estado laico eu acho que ela está contaminada demais.
Mais um dado importante: alguns membros da cúpula da direção do PSB já
saíram, o secretário-geral, gente da executiva, o coordenador da área
LGBT. Se ele se surpreendeu com a correção do programa de governo, o que
dizer de um eleitor que acreditou por 24 horas naquilo. Não fiquei nem
com o pé atrás. Pra mim foi a gota d”água.
Valor: Já considera o Aécio fora da disputa, e a presidente Dilma?
Hatoum: Ela está tentando reagir, o
que atrapalha é o discurso pronto, ensaiado. Ela tinha que ser mais ela.
Quando o mesmo José Agripino a interpelou sobre a ditadura há alguns
anos, ela foi contundente e ele virou um boneco, porque não se brinca
com a tortura. Se ela recuperar aquilo que ela é profundamente, e não
aquilo que o marqueteiro quer que ela seja, pode ser positivo. Ela já
reagiu com a criminalização da homofobia.
Valor: Mas as pesquisas agora apontam vitória da Marina.
Hatoum: O PT errou muito, não fez
autocrítica, por isso é difícil votar hoje no PT e muita gente corre
para uma nova opção, como se fosse algo diferente. Mas não é e não será:
Marina será chantageada pelo PMDB, pelos religiosos, pelo PR, assim
como foi com Dilma, FHC. Mas vai ter muita disputa ainda. Não podemos
esquecer que o único partido com militância real ainda é o PT, isso pode
fazer diferença. Nenhum partido brasileiro tem a militância do PT. Não é
o Rede que é sustentável, é a militância.
Valor: Se não vai votar em Marina, qual será sua opção?
Hatoum: Estou sem candidato. Tem o
Eduardo Jorge [PV], o PSOL, não me importo em votar em partidos
pequenos. Vários amigos estavam com Marina e muitos desistiram depois do
episódio do plano de governo. Entrevista publicada no jornal Valor
Economico
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