domingo, 21 de setembro de 2014

Candidata do PSB tornou-se refém do fundamentalismo

Sexta-feira 5, setembro 2014

Hatoum: “A mudança do texto original [do programa de governo] por pressão de líderes religiosos foi lamentável”
Confira a seguir a conversa com o escritor Milton Hatoum:
 Valor: Você iria votar em Marina e desistiu. O que houve?
 Milton Hatoum: Votei nela no primeiro turno em 2010. Este ano estava propenso a votar no candidato Eduardo Campos, isso sim. Acho que ele era um político de centro-esquerda com ideias para o Brasil, com liderança, não estava contaminado nem um pouco por um discurso messiânico, religioso.
 Valor: A questão religiosa gerou seu desencanto com Marina?
Hatoum: Achei até consistente o programa de governo da Marina, embora muito vago em alguns aspectos, mas quando eu li as alterações todas, feitas às pressas, vi que ela tinha se tornado refém dos partidos religiosos fundamentalistas.
Valor: Foi aí que “desmarinou”?
Hatoum: Em três dias vimos que a política pode mudar como as nuvens. A mudança do texto original por pressão de líderes religiosos foi lamentável. Mas também teve a adesão de velhas raposas da política brasileira à onda Marina nos últimos dias: José Agripino Maia, fisiológicos do PMDB. Quando ela diz que vai governar com os melhores isso não significa nada.
Valor: Você fala das possíveis alianças de Marina, mas era Eduardo Campos o responsável por elas.
Hatoum: Marina deu espaço demais [a esses líderes evangélicos]. Ela se inspira em versículos bíblicos aleatórios para tomar decisões. Isso é assustador, um retrocesso geral. Ele [Campos] fazia costuras, mas não aceitava o PMDB, que já está se aproximando da Marina, assim como outros políticos de caráter mais duvidoso. Acho que ele teria mais força de fazer um filtro.
Valor: O PSDB se enfraqueceu.
Hatoum: Perdeu toda a força que tinha no começo, o candidato Aécio Neves está perplexo, abatido com essa virada. Me parece que a disputa está definida [Dilma e Marina], não as eleições.
Valor: O PSDB fala que até 15 de setembro retomará o segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.
Hatoum: Acho difícil. O PT tem um eleitorado muito cativo, quem vota no PT não vota em mais ninguém. Muita gente que vai votar na Marina não quer mais polarização [PT-PSDB] e tem muita gente que não pensa a política de forma reflexiva. Depois do acidente surgiu um elemento de quase devoção pela Marina. O PSDB não vira.
Valor: Essa devoção combina com a ideia de nova política?
Hatoum: Isso é chocante. Corremos o risco de essa devoção, esse personalismo ser substituído por um espécie de messianismo. Política não pode ser um ato consumado do plano divino, não pode ser inspirada pela Bíblia ou qualquer outro texto sagrado, porque o Estado laico se atrofia.
Valor: De novo a religião…
Hatoum: Repare na linguagem desse pastor [Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo]: disse que Aécio e Dilma não são malucos de defender temas como o casamento gay, se eles fizerem isso o sarrafo vai comer. É a linguagem do preconceito, da violência. É como chutar a imagem de uma santa católica, incendiar um templo de candomblé no Rio de Janeiro. Ele falou que o governo representará a maioria cristã da sociedade brasileira. Um absurdo! E os judeus, budistas, católicos, os mais de 20 milhões de agnósticos e ateus não estarão representados?
Valor: Não votar em Marina por ela ser evangélica é preconceito?
Hatoum: A questão é que a política não pode ser um ato consumado pelo poder divino.
“Velhas raposas aderiram à onda Marina; quando ela diz que vai governar com os melhores isso não significa nada”
Valor: Mas Marina é mais marcada pela religião do que seus adversários, não acha?
Hatoum: Ela é a mais marcada porque tudo tem uma conexão com o plano divino. Deus não sai de seu discurso. Eu acho isso estranho. Que os pastores digam isso, tudo bem, mas para um candidato de um Estado laico eu acho que ela está contaminada demais. Mais um dado importante: alguns membros da cúpula da direção do PSB já saíram, o secretário-geral, gente da executiva, o coordenador da área LGBT. Se ele se surpreendeu com a correção do programa de governo, o que dizer de um eleitor que acreditou por 24 horas naquilo. Não fiquei nem com o pé atrás. Pra mim foi a gota d”água.
Valor: Já considera o Aécio fora da disputa, e a presidente Dilma?
Hatoum: Ela está tentando reagir, o que atrapalha é o discurso pronto, ensaiado. Ela tinha que ser mais ela. Quando o mesmo José Agripino a interpelou sobre a ditadura há alguns anos, ela foi contundente e ele virou um boneco, porque não se brinca com a tortura. Se ela recuperar aquilo que ela é profundamente, e não aquilo que o marqueteiro quer que ela seja, pode ser positivo. Ela já reagiu com a criminalização da homofobia.
Valor: Mas as pesquisas agora apontam vitória da Marina.
Hatoum: O PT errou muito, não fez autocrítica, por isso é difícil votar hoje no PT e muita gente corre para uma nova opção, como se fosse algo diferente. Mas não é e não será: Marina será chantageada pelo PMDB, pelos religiosos, pelo PR, assim como foi com Dilma, FHC. Mas vai ter muita disputa ainda. Não podemos esquecer que o único partido com militância real ainda é o PT, isso pode fazer diferença. Nenhum partido brasileiro tem a militância do PT. Não é o Rede que é sustentável, é a militância.
Valor: Se não vai votar em Marina, qual será sua opção?

Hatoum: Estou sem candidato. Tem o Eduardo Jorge [PV], o PSOL, não me importo em votar em partidos pequenos. Vários amigos estavam com Marina e muitos desistiram depois do episódio do plano de governo. Entrevista publicada no jornal Valor Economico

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