Abandone o movimento LGBT
Queridas mulheres lésbicas, pessoas
bissexuais, pansexuais, assexuais, pessoas trans e em especial mulheres
trans e travestis deste Brasil,
A hora já passou. Já testemunhamos o que o
movimento LGBT (daqui em diante referido como GGGG) nos tinha a
oferecer: melhor exemplo patente do que significa o termo “assimilação”.
Exemplo patente de que vivemos numa sociedade patriarcal, onde a
realidade de gênero onde vai se colocar um homem cisgênero resulta
numa realidade de dominação interna ao movimento. Se as nossas demandas
e necessidades específicas foram postas e re-postas nas mesas forradas
com a bandeira do arco-íris, nos gabinetes limpinhos das instituições
onde esta “política” tem sido feita, e foram repetidamente
negligenciadas e tratadas como secundárias por tanto tempo, não
precisamos de mais evidência. É na nossa carne que já foi gravada com
obviedade que estes espaços estão sitiados: sitiados por homens gays
cisgêneros que têm agido repetidamente de forma misógina, transfóbica,
lesbofóbica e bifóbica.
Internamente aos círculos deste movimento
temos assistido silenciadas enquanto a invisibilidade lésbica e o
apagamento bissexual imperavam em cima das demandas de pessoas diversas.
Assistimos silenciadas enquanto estes homens veementemente defendiam
que pudessem casar-se uns com os outros, e que criminalizassem o que
chamavam de “homofobia”. Eu digo silenciadas por caladas nunca
estivemos. Nossas vozes não estavam ausentes, mas atropeladas.
Resistimos. Não vimos este mesmo empenho de luta em direção à Lei João
Nery, não vimos este empenho na luta contra a misoginia que atravessa
inexoravelmente a realidade de nós, mulheres lésbicas e bissexuais.
Tal acontecimento não é um acidente do
destino, ou erro de má gestão. Que nossas pautas sejam esmagadas dentro
deste movimento é resultado do fato deste movimento inserir-se dentro do
patriarcado, e dentro do patriarcado toda misoginia segue protegida
pela irmandade entre os homens, pela misoginia que ensopa a bandeira do
arco-íris, bandeira com a qual muito já foi enxugado. Chegou a hora de
torcer esta bandeira, e fazer desse sangue água. Chegou a hora de matar
nossa sede.
Esqueça o movimento LGBT. Não existe nada
a se disputar ou reformar que seja valioso para nosso tempo. Nosso
tempo deve ser gastado sabiamente. De nós já arrancam tempo demais
quando nos dão as tarefas que não dão para si. De nós já arrancaram
tempo demais ao nos botar para trabalhar sem receber nada em troca:
mulheres trans e travestis e drag queens sempre estiveram nas
trincheiras deste movimento, estivemos na sua origem, estivemos em cada
passo. Isto foi trabalho não pago. E trabalho não pago é exploração. E
no que trabalhamos e sangramos, não nos vimos representadas. Não vimos a
misoginia e em especial a transmisoginia sendo atacada. Nós vimos
travestis sendo colocadas na presidência destes grupos como enfeites.
Nós vimos as estatísticas sendo infladas com as mortes das travestis —
estatísticas que o movimento GGGG chamará de “mortes por homofobia”, e
não de transmisoginia, de transfobia, como de fato é. Este movimento não
era nem muito menos é combatente árduo do que nós sofremos
especificamente. Se estas estatísticas estão altas assim, não é também
por acaso. O movimento GGGG é também quem encharca esta bandeira.
Não existe potência a se resgatar.
Abandone o movimento LGBT. Organização política entre as pessoas trans,
em um movimento trans, é o que precisamos para chegar a algum lugar.
Organização política entre mulheres lésbicas, entre as pessoas
bissexuais e pansexuais, assexuais é o que alavancará estas lutas.
Sujeitar-se à mediação e à aprovação de homens gays cisgêneros é um
desperdício de tempo ao qual nossa paciência já deveria ter se esgotado.
Se ainda a temos, é porque o movimento GGGG fez bom trabalho em
mascarar a realidade de forma a fazer parecer que ele era a única via. A
fazer parecer que se não lutávamos ali não havia onde lutar. Forjemos
então nossos espaços, bordemos nossas bandeiras — pois a bandeira do
arco-íris não me representa, e se você se sente representar por ela
talvez seja boa hora para repensar o que ela realmente significa:
apagamento lésbico, monossexismo,
transfobia. Ninguém reconhece esta bandeira como uma bandeira de nossas
lutas, mas como uma bandeira de luta contra a homofobia e nada mais.
Esta não é a nossa luta: nós possuímos especificidades e precisamos dar
cabo de nossas lutas.
Estes homens irão nos pedir paciência.
Mulher, não lhes dê essa paciência. Pessoas trans, não lhes dê essa
paciência. Mulheres trans, por favor, por favor, não lhe dê essa
paciência. Não é paciência que querem: é silêncio. Nos prometerão como
padres que nossa hora chegará. E assim como o padre, estão mentindo.
Não quero sugerir que não devemos manter
laços entre nossas realidades de luta, que não devemos ter solidariedade
e nos apoiar mutuamente, não quero dizer que não devemos trabalhar com intersecionalidade.
O que quero dizer é que precisamos de autonomia, e principalmente de
que precisamos de autonomia em relação a estas pessoas que nos tem
travado a participação e a presença.
A misoginia dentro da comunidade GGGG
transborda pelas margens. A transfobia chove todos os dias. Isto não é
um afirmação aberta a ponderações, é uma constatação de quem a sentiu na
carne. É uma constatação a ser compartilhada por quem quiser se dispor a
debruçar-se por cinco minutos sobre a questão. Não gastemos nosso tempo
empurrando pedras de cinco toneladas morro acima na tentativa fútil de
convencer homens cisgêneros a não serem misóginos: contornemos o morro,
derrubemos nós as pedras, precisamos fortalecer os movimentos
específicos e nos organizar entre nós.
O movimento GGGG falhou conosco. Ele
falhou. Falhou em se colocar firmemente contra o capitalismo. Pelo
contrário, hoje institucionalizou-se no Estado e assimilou-se como se
nosso trabalho enquanto pessoas subalternalizadas pelo heterossexismo fosse
gerar dinheiro para grandes capitalistas. Fala-se em “turismo LGBT”, em
“família LGBT” (família, uma das instituições que mais tem sustentado e
exercido o controle sobre nós) e em “público LGBT” como um nicho de
mercado. Nós não queremos ser nicho de mercado. Queremos liberdade e
autonomia para as pessoas marginalizadas tanto pelo heterossexismo
quanto pelo Capital. As pessoas não-heterossexuais e/ou trans de classe
trabalhadora são duplamente subalternalizadas, e numa sociedade que
comercializa nossos corpos, nossa sexualidade e nossos gêneros —
principalmente os de nós mulheres — isto não significa pouca coisa. Um
movimento que se pretende “LGBT” e que não é firmemente anticapitalista é
como um movimento feminista que não é firmemente anti-transfóbico.
Falha em suas premissas, compromete-se com as ferramentas de quem nos
está matando aos poucos.
Abandone o movimento LGBT. Forje
solidariedade interna. Leiamos o que o movimento GGGG nunca imprimiu:
leiamos sobre monossexismo, sobre transmisoginia, sobre lesbofobia.
Digamos aquilo que o movimento GGGG nunca disse: criemos autonomia e
lutemos por justiça, e não por um lugar junto às pessoas cis heterossexuais
burguesas e brancas. Cansemos de uma vez por todas de sermos rifadas e
caladas internamente, a hora é essa e já é por demais tardia. Não existe
paciência a se deixar exigir por estes homens. A esta altura do
campeonato, separar é unir. Precisamos falar sobre nós agora. E é só
sobre nós que falaremos onde nos organizarmos.
Não nos assimilarão!
http://incandescencia.org/2014/01/09/abandone-o-movimento-lgbt/
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