quarta-feira, 16 de abril de 2014

Entrevista: Laura Kipnis
Contra o amor
A pesquisadora americana diz
que a obrigação de
se apaixonar
tornou as pessoas mais infelizes

Diogo Schelp
A americana Laura Kipnis, professora de comunicações na Universidade Northwestern, em Illinois, nos Estados Unidos, contesta alguns dos conceitos mais sagrados da sociedade, como o amor, o casamento e a monogamia. Em Against Love – A Polemic (Contra o Amor – Uma Polêmica, que será publicado neste ano no Brasil), livro de grande repercussão lançado em 2003 nos Estados Unidos, ela diz que, no mundo moderno, o amor passou a ser visto como a solução para as dúvidas existenciais do ser humano – e que isso é uma tremenda encrenca. A expectativa quanto à felicidade que o amor deve proporcionar complicou o casamento e outros tipos de relação estável, pois exige do casal um esforço inédito para que as coisas dêem certo. Para a professora, essa nova realidade é uma enorme fonte de stress e depressão. Autora de outros dois livros que analisam as relações entre sexualidade e política, ela prepara agora um volume sobre escândalos sexuais. Laura – que tem 47 anos e está solteira, mas já passou por longos relacionamentos – falou a VEJA de Chicago, onde mora.
Veja – O amor traz felicidade?
Laura – Não exatamente. A idéia de que o amor leva à felicidade é uma invenção moderna. A gente aprende a acreditar que o amor deve durar para sempre e que o casamento é o melhor lugar para exercê-lo. No passado não havia tanto otimismo quanto à longevidade da paixão. Romeu e Julieta não é uma história feliz, é uma tragédia. O mito do amor romântico que leva ao casamento e à felicidade é uma invenção do fim do século XVIII. Nas últimas décadas, a expectativa quanto ao casamento como o caminho para a realização pessoal cresceu muito. A decepção e a insatisfação cresceram junto.  
Veja – Ou seja, enquanto antes as pessoas sofriam porque os casamentos eram arranjados, hoje sofrem porque acham que devem encontrar a pessoa ideal?
Laura – Exato. Imagine alguém dizer que é contra o amor. É considerado um herege. As propagandas, as novelas, os filmes, os conselhos dos parentes, tudo contribui para promover os benefícios do amor. Deixar de amar significa não alcançar o que é mais essencialmente humano. O casamento é envolto pelo mesmo tipo de cobrança. E, quando cai por terra a expectativa do romance e da atração sexual eternos, surge a pergunta: "O que há de errado comigo?". O diagnóstico dos terapeutas é "inabilidade para se estabelecer" ou "imaturidade". Não é à toa que as pessoas consomem cada vez mais antidepressivos. A questão que eu coloco é: talvez o problema não seja do indivíduo, mas da incapacidade do casamento em cumprir as promessas de felicidade.  
Veja – E por que o casamento não satisfaz?
Laura – O casamento transforma pessoas agradáveis em tiranos domésticos. Criticar os hábitos do parceiro torna-se a conversa-padrão do casal e a diversão favorita passa a ser modificar o comportamento do cônjuge. Existe algum momento na vida do casal que não seja permeado por regras, desde o modo como você coloca os pratos na máquina de lavar louça até o que pode dizer em uma festa? Nos Estados Unidos, apenas 38% das pessoas consideram-se felizes em seu casamento.  
Veja – Se casar é tão ruim, por que há tanta gente que tenta duas, três vezes?
Laura – Essas pessoas provavelmente acreditam que o problema não esteja na instituição em si ou nas suas expectativas impossíveis. Para esses otimistas, o problema é que por algum motivo eles falharam em encontrar a pessoa certa ou cometeram algum erro. Ficam imaginando: "Se eu tivesse colocado as meias no cesto de roupa suja em vez de largá-las no corredor, tudo teria dado certo".  
Veja – A instituição casamento vai desaparecer?
Laura – Nos Estados Unidos, o índice de divórcio é de 50%, o que dá uma idéia da fragilidade da instituição. Além disso, a proporção de casas sustentadas por solteiros está aumentando. Mas eu não acho que a instituição casamento vá acabar. Vai, isso sim, mudar muito. A primeira mudança é econômica. Cada vez mais os cônjuges têm independência financeira um do outro. A segunda mudança é que mais e mais jovens estão tratando seu primeiro casamento como algo temporário. Ou seja, as pessoas começam um casamento no qual elas já imaginam que não vão ficar. É só mais uma experiência de vida.
Veja – No entanto, os gays lutam para ter o direito de se casar. Por quê?
Laura – Há um claro motivo prático. Eles buscam os mesmos direitos a benefícios sociais que a sociedade dá aos heterossexuais. Há também uma razão simbólica. Afinal, se o casamento gay é aprovado legalmente, significa que o governo está testemunhando e endossando uma opção de vida. Algumas pessoas consideram isso importante. Eu sinceramente acho que não leva a nada. É surpreendente que esse seja o resultado da liberação homossexual, conquistada com tanta luta e enfrentando tantos preconceitos. Qual é o valor de o governo se envolver no relacionamento dessas pessoas?  
Veja – Como salvar um casamento?
Laura – Aí é que está. Para que tentar salvar um casamento fracassado? A verdade é que há uma indústria enorme que lucra com a infelicidade no casamento. Você tem drogas como o Viagra, para resolver o problema da falta de desejo, tem terapia, livros de auto-ajuda, pornografia para casais e antidepressivos. A impressão que se tem é que o maior beneficiado com a manutenção do casamento não é o indivíduo em si, mas a sociedade em geral. O indivíduo está cada vez mais estressado e deprimido porque é infeliz no casamento.  
Veja – Não vale a pena esforçar-se para que um relacionamento dê certo?
Laura – Não é isso. Apenas espero que as pessoas tentem descobrir quem realmente lucra com esse esforço. Impressiona como a retórica da fábrica está se tornando a linguagem do amor. Abra um desses livros de auto-ajuda que pretendem salvar casamentos ou preste atenção nas expressões que os terapeutas usam. Todos dizem que temos de "trabalhar com mais intensidade a relação" ou "nos esforçar mais pelo sucesso do casamento". Virou lugar-comum dizer isso. Quer coisa mais desestimulante do que "trabalhar" a questão sexual com seu parceiro? Se é assim, se sexo e amor são trabalho, precisamos saber quem está lucrando com isso.  
Veja – Qual o papel do adultério na sociedade?
Laura – Os seres humanos são animais que procuram o prazer. Claro que na maior parte do tempo temos de renunciar a isso. Afinal, usamos roupas e não saímos por aí fazendo sexo com todo mundo. Mas a questão é: quanto de renúncia de nossos desejos a sociedade exige, em relação à quantidade de gratificação que ela nos dá em troca? O adúltero provavelmente acha que a renúncia exigida é grande demais. Temos de reconhecer que, se o casamento não está entregando a felicidade prometida, é natural que as pessoas procurem outras fontes compensatórias de satisfação, seja no adultério, seja em doses triplas de martíni.  
Veja – A senhora é uma entusiasta do adultério?
Laura – Não, absolutamente. O adultério é apenas um complemento, uma vazão para os desejos mais básicos do ser humano, mas não muda o cerne do problema, que é o casamento. Na verdade, o adultério sustenta o casamento e permite que aquela situação de infelicidade persista. É apenas uma forma de protesto à lei da fidelidade, mas não tem potencial transformador. Para mudar alguma coisa, deveria ser um protesto aberto. Mas é óbvio que é secreto. Talvez seja interessante ver o adultério como um jeito improdutivo de experimentar o amor, desprovido da ética do trabalho que tanto impregna os relacionamentos nos dias de hoje.
Veja – Nelson Rodrigues, um dramaturgo brasileiro, escreveu que a fidelidade deveria ser opcional, não obrigatória. A senhora concorda?
Laura – Concordo. Na maioria das vezes as pessoas optam pela fidelidade, ao mesmo tempo que a consideram uma obrigação. Há tanta pressão social nesse terreno que é difícil separar o que é opção pessoal do que é imposição. Há duas formas de pressão pela fidelidade. A primeira, entre quatro paredes, é o ciúme, um sentimento inquestionável. Ninguém gosta que o parceiro olhe para outra pessoa. E muitos se sentem no direito de controlar os movimentos do companheiro, para ter certeza de que não estão sendo traídos. Claro que isso é fruto da insegurança e do medo de ser abandonado. Pode ser um paradoxo, mas os desejos do parceiro acabam se tornando uma ameaça. A outra forma de pressão pela fidelidade é social. A sociedade é baseada no princípio de que o desejo pode ser controlado. Por isso, o desejo expresso fora do casamento é anti-social, porque ele promove instabilidade, em oposição a um relacionamento estável.  
Veja – O mesmo vale para a pornografia?
Laura – A pornografia é central em nossa cultura. Nos Estados Unidos, movimenta uma indústria de 9 bilhões de dólares. E está se tornando cada vez mais disponível com a popularização da internet. Há um aspecto utópico na pornografia. Sua regra é a transgressão. Como as pessoas não estão recebendo tanto prazer como desejam, porque a expectativa em relação ao sexo vai além do que a realidade oferece, elas procuram a resposta para sua realização pessoal em outro lugar. E é nisso que a pornografia se aproxima do adultério: ambos são complementos que ajudam a sustentar relacionamentos estáveis e insatisfatórios. 
Veja – Esses complementos podem ter conseqüências bastante destruidoras, não? O presidente americano Bill Clinton, por exemplo, quase sofreu um impeachment por seu relacionamento com uma estagiária.
Laura – Não foi exatamente o adultério que colocou Clinton em maus lençóis, mas o fato de ter arriscado tanto por tão pouco. Os americanos não se conformavam que seu presidente pudesse ter colocado o cargo em jogo por um desejo íntimo. É incrível também que muitos dos membros da comissão empenhada no impeachment de Clinton eram, eles mesmos, adúlteros. Os escândalos sexuais têm uma função interessante: a população, de modo geral, não confia nos políticos, mas nem sempre tem oportunidade de comprovar isso. A revelação dos escândalos privados dos políticos serve para os eleitores poderem dizer: "Eles realmente não falam a verdade". Ou seja, o foco é deslocado do âmbito político para a vida privada apenas por uma necessidade da população de comprovar suas suspeitas.  
Veja – Homens traem mais que mulheres. Por quê?
Laura – Os biólogos fazem pesquisas tentando demonstrar que o homem tem uma tendência natural à poligamia. Mas as estatísticas mostram que, quanto mais as mulheres avançam no mercado de trabalho, mais elas traem. Ou seja, a independência financeira dá mais liberdade e mais oportunidades para as mulheres pularem a cerca. Logo elas alcançam os homens também nesse quesito.
Veja – Solteiros são mais felizes que pessoas casadas?
Laura – Aparentemente não. O solteiro é tratado como um perdedor. Estava assistindo a Sex and the City (seriado americano cujas personagens principais são solteiras) ontem à noite e essa era justamente a questão que estava sendo colocada. É difícil falar de felicidade se você vai contra a norma social, que é casar-se e constituir um lar tradicional.  
Veja – O sexo é mostrado de maneira cada vez mais natural e aberta. Em sua opinião, vivemos em uma sociedade demasiadamente sexualizada?
Laura – Sim, e de maneira contraditória. O sexo é apresentado como um símbolo da liberdade para vender produtos. Até cantores e cantoras usam o corpo para vender sua música. Ao mesmo tempo, não há indícios de que as pessoas estejam fazendo mais e melhor sexo. O sexo, da maneira como é mostrado atualmente, está se tornando cada vez menos sexy.  
Veja – A senhora concorda com os psicólogos que dizem que a forma ideal de educar uma criança é em uma casa com pai e mãe?
Laura – Isso é balela. É só mais um argumento para perpetuar o casamento. Crianças criadas em casamentos infelizes não vão ficar melhores ou ter uma infância melhor. Esse é o problema. Todo o foco no que se refere ao bem da criança é colocado na forma como os pais se relacionam – se vivem juntos ou não ou se a mãe é solteira, por exemplo. Pouca atenção é dada a outros fatores mais importantes para o desenvolvimento da criança, como a condição socioeconômica da família.
Veja – A senhora é casada?
Laura – Não. Eu não gosto de responder a questões pessoais. O que posso dizer é que passei boa parte da minha vida em longos relacionamentos. Sou muito romântica. Acho que apaixonar-se é o sentimento utópico mais interessante que existe. Àqueles que acabaram de se apaixonar, o que posso dizer é: "Boa sorte, vão em frente. Só não esperem que vá durar para sempre".


 

 

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