Quando
pega a estrada, Valdely Kynupp olha para o canteiro ao lado da pista e
enxerga um supermercado. O mato que, para o motorista comum, parece
apenas fruto da má conservação das rodovias brasileiras, tem valor
nutricional para esse botânico, pesquisador do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam). Ele vê taboas, uma
planta aquática típica de banhados, e imagina uma salada. O pólen da
taboa, que tem seis vezes mais vitamina C que a laranja, pode ser comido
puro, de colher. Ou junto com iogurte.
Kynupp tem uma paixão
por alimentos alternativos. Em sua tese de doutorado, estudou 1,5 mil
inços, pragas e ervas daninhas na região metropolitana de Porto Alegre.
Concluiu que 311 (cerca de 20%) tinham potencial alimentício. Isso é
muito mais do que costumamos comprar na feira ou no supermercado. A FAO,
o órgão das Nações Unidas para alimentação e agricultura, estima que a
demanda mundial por alimentos dependa de 150 espécies, sendo que apenas
12 delas são responsáveis por 75% de tudo o que nós comemos. Nossa
variedade alimentícia não é tão variada assim: arroz, milho e trigo
fornecem metade de toda a energia alimentar do planeta (incluído aí o
que é destinado para ração animal).
Mas nem sempre foi assim. A
FAO calcula que, ao longo da história, 7 mil espécies foram cultivadas
para fins alimentares. Os critérios sobre o que é comestível variam
conforme as culturas e a passagem do tempo, mas uma das mais completas
listagens está no livro Plants for Human Consumption ("plantas para
consumo humano", sem edição no Brasil), de Günther Kunkel. Na obra, o
botânico alemão contabilizou 12,5 mil espécies potencialmente
alimentícias. O número pode ser ainda maior. Um dos mais respeitados
estudiosos da área, o ecologista argentino Eduardo Rapoport, estima em
27 mil as plantas que podem ser servidas na mesa. Então, quando Kynupp
olha para a beira da estrada, não enxerga apenas um palmito alternativo
com valor nutricional. Ele vê um enorme potencial desperdiçado. As
plantas alimentícias não convencionais, conhecidas por uma sonora sigla
(pancs), poderiam enriquecer em nutrientes e baratear em custo a dieta
do brasileiro.
Dentro das caravelas que chegaram às Américas,
os europeus trouxeram sementes das suas espécies favoritas, como arroz e
trigo. E o gosto do colonizador venceu a cultura dos índios, que se
alimentavam do que a natureza oferecia ao seu redor. Cinco séculos
depois, cerca de 52% das espécies mais consumidas no mundo vêm da Europa
e da Ásia. Para cultivá-las em ecossistemas estrangeiros, agricultores
do mundo todo fazem uma ginástica enorme, gastando bilhões de dólares em
preparação do solo, sementes modificadas e pesticidas. O Brasil, por
exemplo, importa mais de 60% do trigo que consome. E 90% da produção
nacional está concentrada no Sul. Ou seja, para comer o pãozinho de cada
dia, você depende de uma planta originária do Oriente Médio, que, se
não foi importada da Argentina, do Uruguai ou do Paraguai, veio de um
lugar do sul do País para virar farinha e cruzar milhares de quilômetros
até chegar à padaria. E isso acontece no mundo inteiro. O trigo é
produzido em poucas regiões do planeta - as zonas de produção são
pequenas manchas no globo, principalmente na Europa, Ásia e América do
Norte.
Enquanto isso, possivelmente há plantas nutritivas
brotando no quintal da sua casa ou em algum terreno baldio da
vizinhança. "Mas a maioria das pessoas não enxerga isso. Vê tudo como
mato", diz Kynupp, que consumiu, para fins acadêmicos, 253 das 1,5 mil
espécies analisadas. São folhas, raízes, frutos e flores, entre outras
partes de plantas. Em geral, as pancs, também chamadas de hortaliças
negligenciadas ou subutilizadas, são mais amargas que as verduras
compradas no supermercado. Algumas são levemente tóxicas. Mas o risco
depende da sensibilidade de cada pessoa, do modo de preparo e, também,
de quem colhe as plantas. "Quem mora na zona rural sabe diferenciar uma
planta da outra, assim como quem mora na cidade tende a diferenciar
marcas de carros", exemplifica Kynupp. Grande parte das plantas
alimentícias não-convencionais também são consideradas "ruderais", ou
seja, vegetais adaptados às cercanias das construções humanas, que se
aproveitam dos restos de outros vegetais ou animais para crescer. São
pragas que prosperam em solos ricos em nitrogênio, mas que possuem
grande concentração de proteína.
E é aí que reside o grande
argumento dos defensores dessas plantas. Certo, elas são muito amargas e
algumas são pragas tóxicas. Mas elas são muito nutritivas. "O Brasil é
um dos países mais biodiversos do planeta, mas a nossa alimentação ainda
é muito pobre. A gente come de dez a 20 plantas por dia, cerca de cem
ao longo de um ano inteiro. Isso é pouco", diz Kynupp. "E quase tudo que
a gente come não é brasileiro. A gente fala muito da biodiversidade
brasileira e come a biodiversidade dos outros".
O discurso é
saboroso, mas, na prática, a valorização das espécies silvestres ainda
está restrita aos círculos acadêmicos e ao setor mais hardcore das
feiras de alimentos orgânicos. Em 2010, o Ministério da Agricultura
lançou o Manual de Hortaliças Não-Convencionais, com orientações para
cultivo e preparo de 23 espécies, entre elas o jacatupé,
chuchu-de-vento, beldroega e ora-pro-nóbis. Este último é um dos poucos
alimentos não tradicionais que têm relativa popularidade, especialmente
em Minas Gerais, onde há até um festival gastronômico, em Sabará,
dedicado à planta.
Em maio do ano passado, a FAO manifestou
preocupação com a diversidade alimentar e recomendou o consumo de
insetos como fonte de proteína. Mas por que insetos e não pancs?
Besouros e grilos ganharam atenção porque são saudáveis e a criação é
barata. Para produzir a mesma proteína, o grilo precisa de um volume de
alimentação 12 vezes menor que o gado, por exemplo. Além disso, ao
contrário de plantas verdinhas, insetos são nojentos, então eles
precisam de um incentivo, de uma campanha mais convincente para serem
popularizados.
Estudos apoiam a tese do potencial nutricional
das variedades rústicas. Jo Robinson, jornalista e autora do
recém-lançado livro Eating on the Wild Side ("comendo no lado selvagem",
sem edição no Brasil), dá um exemplo: um dente-de-leão selvagem tem
sete vezes mais fitonutrientes do que o espinafre, que, como sabe quem
via Popeye, é um superalimento. Os fitonutrientes ajudam a combater o
câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e demência.
Ainda há
o caso de alimentos tradicionais que perderam potencial nutritivo, como
o milho. Nas últimas décadas, ele vem sendo selecionado para ser mais
doce, o que permite a produção de etanol. Hoje, quase 40% do milho é
açúcar. A padronização cresce e nosso acesso a culturas alimentares
diferentes diminui.
Mas ainda há muito a explorar,
espepecialmente entre essas espécies excluídas. Um passeio pelo Jardim
Botânico de Porto Alegre ajuda a entender o que o aventureiro pode
esperar de uma colheita silvestre em terreno urbano. O picão-preto, que
tem folhas similares às de hortelã, nasce no meio da grama e tem sabor
suave. Serralha lembra uma rúcula, mas não muito amarga. O sabor picante
e doce é a marca das folhas da capuchinha, cuja flor já é usada como
decoração de saladas. O picão-branco tem leve amargor e lembra o
manjericão na aparência. Nenhuma dessas espécies é repugnante. A
degustação não convencional foi acompanhada de uma conhecedora do tema, a
diretora executiva do Jardim Botânico, Andréia Carneiro, especialista
em pancs. Não por acaso, Andréia conviveu com Kynupp. "O Valdely fazia
suco de cacto, que é a coisa mais nojenta do mundo", lembra. "Ele come
qualquer porcaria".
Andréia, diferentemente de Kynupp, não recomenda
uma expedição gastrômica silvestre sem o acompanhamento de um
especialista. "É difícil reconhecer as plantas se tu não és botânico",
avisa. Além do mais, a tolerância aos sabores rústicos e ao nível de
toxinas varia para cada pessoa. O amargor marcante em grande parte das
folhas indica um dos maiores benefícios de incluir plantas
negligenciadas na dieta. Segundo Andréia, o gosto forte revela a
presença de compostos secundários na planta, que deixam os alimentos
mais nutritivos. Em alguns casos, porém, isso indica o nível de toxidade
da planta. "É um aviso da natureza", ensina. Portanto, cuidado na
colheita.
Experimente
Plantas não convencionais que podem ir para sua salada
Chuchu-de-vento
Famoso no Peru. Pode ser consumido cru, frito, ou cozido. O fruto é amargo adocicado. Acompanha carnes e molhos.
Encontre - É uma trepadeira, então precisa de espaço. É raro vê-lo em uma calçada.
Beldroega
Boa para a salada. Os talos e folhas podem ser consumidos crus ou como sopas, sucos ou caldos, que ficam cremosos.
Encontre - Os ramos e folhas são pequenos e podem ser encontrados em
qualquer solo rico em matéria orgânica - até mesmo em terrenos baldios.
Ora-pro-nóbis
Cacto com jeito de trepadeira, é popular em Minas, onde é consumido em angus, sopas, mexidos e omeletes.
Encontre - Em tudo que é lugar. Precisa de pouca água e sobrevive em condições extremas.
Serralha
Conhecida também como chicória-brava, as folhas, quando tenras, combinam com salada verde.
Encontre - Comum em terrenos abandonados, próximo a muros e cercas. É uma erva resistente que não chega a 1 metro de altura.
Jacatupé
Consumido na Amazônia Ocidental. As raízes podem ser comidas cruas,
cozidas ou defumadas. É possível fazer polvilho das raízes para bolos e
tortas.
Encontre - Mais difícil. É uma trepadeira comum em cabeceiras de rios da Amazônia.
Como não morrer comendo mato em 5 passos
1. Por partes
Algumas plantas são, sim, tóxicas. Mas as toxinas ficam mais perigosas à
medida que são ingeridas em maior quantidade. O melhor a fazer é provar
um pequeno pedaço. Se agradar, continue. Se parecer repugnante ou
extremamente amargo, cuspa.
2. Gostinho amargo
É um tema polêmico entre os apreciadores, mas o alto amargor pode
indicar risco. Seria um aviso da natureza, aprimorado em milênios de
coleta pelos nossos ancestrais.
3. Fibras
Evite folhas ou caules muito fibrosos. Você terá dificuldade de mastigar e digerir. Se for pouco flexível, passe adiante.
4. Confie nos entendidos
Quem já viu o filme Na Natureza Selvagem sabe do risco de confiar em
livros e ilustrações para escolher o mato certo. Prefira ouvir
botânicos, especialistas na flora local ou manuais de plantas
comestíveis se estiver em dúvida.
5. Ponha na panela
Algumas plantas são difíceis de comer e até tóxicas quando cruas, mas
se tornam palatáveis depois de cozidas. Cada caso é um caso, é claro,
mas os riscos costumam diminuir quando as plantas vão ao fogo.
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