Dilma, Janaína e “gaslighting”
Márcia Tiburi
A capa da Revista Istoé com uma distorção da imagem da presidenta Dilma Rousseff, num evidente momento de abuso moral e estético e de impressionante violência simbólica, infelizmente sempre tão facilmente naturalizada, valeu dessa vez a esse veículo de comunicação uma nova alcunha: IstoéMachismo.
Vai ser difícil limpar esse nome.
A imagem e o discurso da professora e advogada Janaína Paschoal na noite de ontem, 4 de abril de 2016, circula nas redes sociais como piada. A advogada faz parte do grupo que assina o pedido de impeachment, para muitos tido como um “golpe”.
As posições políticas de ambas podem ser avalizadas com mais profundidade em outro momento. O modo como as imagens dessas mulheres vem à tona em nossos dias, contudo, precisa ser analisado.
No primeiro caso se trata de uma imagem manipulada por meios digitais. No segundo caso, trata-se da gravação de um discurso com diversas testemunhas.
Não há nada de comum entre essas imagens, inclusive são diferentes em seus propósitos. A primeira foi produzida num processo de distorção da imagem da presidenta a partir de uma fotografia já conhecida quando da comemoração de um gol durante uma partida de futebol na última Copa do mundo. Distorções são práticas comuns para pessoas e instituições que entendem a política como um jogo sujo. Talvez o desespero do mercado comum à imprensa que hoje perde terreno para outras formas honestas e saudáveis de jornalismo nos faça entender o que a revista em questão pretendia, a saber, vender-se bem nas bancas no mercado do ódio midiático atual e contentar seus patrocinadores promotores de ódio.
É preciso saber que muitas mulheres iminentes na política já passaram por esse tipo de manipulação, diga-se, que beira o estelionato. Kristina Kirschner, Angela Merkel, Michelle Obama, várias dessas figuras são objeto de uma espécie de bullying machista ao qual se dá o nome de gaslighting. Bullying é, nesse caso, um nome estrangeiro simpático, virou uma marca de fantasia entre nós, para ocultar as mais perversas humilhações. Crianças e jovens sofrem isso na escola, mas falando em inglês, parece mais ameno e mais “científico” para todos nós. Pois bem, em psicologia gaslighting tem história. Mas é basicamente um tipo de violência por manipulação psicológica na qual mulheres, mas não apenas elas, são associadas à loucura. Há muitas histórias de suicídio a partir disso. Quem já estudou um mínimo de história da histeria e da história da bruxaria sabe desse nexo produzido culturalmente entre mulheres e loucura. Qualquer mulher em algum momento da sua vida já passou pelo discurso machista com teor de manipulação psicológica.
O perigo de zombar de Janaína Paschoal agora é incorrer nesse jogo que reúne, no mesmo campo simbólico, as mulheres e a loucura.
Então, para que isso não ocorra, é preciso esclarecer certos aspectos.
Janaína Paschoal em pleno discurso político diante de uma plateia da faculdade de direito onde ela mesma leciona, a USP, em determinado momento de sua fala, começou a portar-se com um histrionismo que causou estranhamento a muitos. Pelas redes, muitos diziam que ela tinha enlouquecido ou estava possuída. A performance envolveu alteração do tom de voz, gesticulação intensa, cabelos soltos e esvoaçantes, socos no ar. Para o humor popular, um prato cheio. Para quem se dispuser a estudar a fenomenologia do poder, uma verdadeira iconografia do irracional que causava espanto. O conjunto dos gestos, e sobretudo aquele gesto de girar a bandeira do Brasil no ar e depois soltá-la com força à sua frente era, nada mais era do que uma tentativa de sinalizar poder. Daquelas demonstrações histriônicas que se vê em palanques, ou estádios de futebol, quando homens gritam, suam, contorcem-se, pulam. Mas como tem cabelos curtos, esses homens não parecem fazer nada demais.
Agora, na internet, enquanto muitas pessoas se divertem com a performance que para muitos soa bizarra, outras se preocupam com o nexo entre mulheres e loucura que continua atuando à revelia dos esclarecimentos feministas sobre esse procedimento machista da humilhação chamada gaslighting. O procedimento da manipulação misógina da Revista IstoéMachismo é o mesmo do senso comum que ri nesse momento de Janaína por ela “parecer” louca. O campo geral da loucura ligado às mulheres, apresenta-as como figuras do irracional, do mais mínimo destempero até o descontrole total. As mulheres são tratadas como loucas, de modo a serem diminuídas na sua capacidade intelectual e na suas potências ativas, éticas e políticas. Homens que fazem coisas muito piores não pagam de “loucos”.
Ora, é evidente que o problema na apresentação de Janaína Paschoal não é ser mulher, muito menos seria o de estar louca. Vulgarmente, nos autorizamos a fazer essa reunião de aspectos, por amor à piada, e também pelo machismo estrutural que sustenta essas piadas. Portanto, a questão é outra no que concerne à Janaina Paschoal.
O problema de seu discurso é que ele foi fascista. O conteúdo era de ódio. Era um discurso bastante pobre, carente de ideias. Na ausência do que dizer em termos políticos, as palavras de ódio vieram à tona, mas eram também fracas, pouco expressivas. O apelo à expressão, na falta de argumentos, gera esse tipo de caricatura política. Era preciso gritar, como quando alguém que não conhece uma língua na qual deveria se comunicar, começa a falar alto.
Em nível estético, que conta em contextos de oratória, estamos diante de um caso bem interessante do que podemos chamar de “ridículo político”. Mas uma ressalva deve ser feita. Como as mulheres são muito mais controladas esteticamente, compreendemos o porquê da atenção atual a essa pessoa e a esse evento e não a outros reis do histrionismo, Bolsonaros, Felicianos, Malafaias e outros que fazem de tudo para aparecer.
O não ter nada a dizer que é efeito do empobrecimento da linguagem e do pensamento, algo que surge pela incapacidade de ver o outro, de pensar no outro, gera lacunas afetivas que são também cognitivas. São essas lacunas que retornam como uma espécie de recalcado na fora de expressão caricata.
Mas não pensemos que isso é ingenuidade. No espaço político esse histrionismo tem um propósito claro de mistificação das massas. A ideia de que o outro se curvará a uma demonstração de força, sendo o grito uma delas, está em sua base. Sendo que a força, tendemos a pensar, é sempre masculina e bruta, Janaína Paschoal usou-a pra tentar demonstrar um poder sem fundamento algum. Justamente porque lhe faltava fundamento.
No extremo, pastores neopentecostais e políticos fazem o mesmo que a personagem em questão fez. Gritam, urram, sapateiam, xingam, produzem peças publicitárias, manchetes de jornais, capas de revistas, notícias falsas, operações policiais, julgamentos falsos, tudo ao mesmo tempo num jogo destrutivo da política em que eles pensam que vão se salvar sozinhos.
Nesse momento, é preciso deixar as mulheres e os loucos fora disso.
Hitler não era um louco, vários dos nossos parlamentares, juízes e cidadãos também não o são, ainda que se esforcem por parecer e usem esse “parecer” de modo perverso. No fundo, eles aproveitam os lucros da imagem que se torna uma mercadoria na era do capital em que a inteligência está sempre em baixa.
O fascismo conta com a nossa falta de inteligência.
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