terça-feira, 26 de abril de 2016

“Temos que inventar outra esquerda”, afirma Boaventura Souza dos Santos

boaventuraFotos: Byron Prujansky. Com participação da equipe de um filme que está sendo produzido por Renato Tapajós.
Porto Alegre (RS) – Um dos principais ícones da luta antiglobalização, Boaventura Souza dos Santos é um intelectual orgânico. Autor de dezenas de livros traduzidos em diversas línguas, embora tenha vasta experiência acadêmica nunca deixou de militar em defesa dos oprimidos. Sempre presente nas lutas políticas, participou da construção do Fórum Social Mundial e acompanha o partido Podemos na Espanha que busca outra perspectiva de se fazer a política institucional. Indignado com as formas convencionais que impregnam a cultura política moderna, não poupa críticas inclusive à esquerda tradicional.
Sua presença no último Fórum Social Mundial, realizado mês passado em Porto Alegre, foi marcante. Fez autocríticas ao próprio evento, ressaltando como preocupante a ausência do Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST), maior movimento social do país. Defende a juventude que não se identifica com o que está aí, e aponta a ecologia como uma das prioridades para a esquerda nos próximos anos. Crítico contundente da mídia corporativa, além de escrever em diversos meios alternativos, inclusive no Brasil, defende uma regulação que garanta a pluralidade de visões de mundo.
Na entrevista ao Fazendo Media, analisa a atual conjuntura nacional e aponta caminhos para a esquerda mundial. Fala sobre sua nova pesquisa acadêmica, que visa anunciar experiências inovadoras em diversos países apontando para outro mundo possível. Defende um modelo de desenvolvimento menos predatório e com outras formas de relações sociais, e não cansa de lutar por outro modo de fazer e pensar a política.
O governo avançou muito pouco em pontos que são lutas históricas da esquerda. Dá para acreditar que ele vai mudar de rumo?
Este Fórum mostrou muito bem o descontentamento, a perplexidade que os movimentos têm com a legislação que está sendo feita em Brasília, com o Congresso e a presidenta. Mas também sabem que quando a direita reacionária chega ao poder é extremamente devastadora, como está acontecendo neste momento na Argentina. Os argentinos ainda estão atordoados com as medidas que com meia dúzia de semanas destruíram tudo que havia sido feito nos anos anteriores. Portanto, essa situação em que nos encontramos é muito complicada. O que é a direita brasileira? É uma direita oligárquica, racista, que nunca aceitou que um operário fosse presidente da república, e encontrou um ponto de fraqueza que foi a produção. Explorou ao máximo e tomou uma medida que é extremamente estusiasmante do seu ponto de vista: apresentou e fomentou a ideia do impeachment. Colocou a presidenta na defesa, com um temor obviamente realista, de servir quem impedisse o impeachment porque ninguém gosta que isso lhe aconteça. Talvez por isso tenha de fazer mais concessões que poderia ou deveria fazer. Por isso penso que devemos estar solidários a este governo, mas esses governos precisam ter alguma razão para que possamos defendê-lo.
A luta contra o neoliberalismo pode ser pensada como uma luta entre esquerda e direita?
Sem dúvida, mas não com essa esquerda e essa direita. Nós do sul da Europa temos colocado em causa essa distinção tal e qual como ela se formou. Porque muitos da esquerda acabaram por aceitar o neoliberalismo. A esquerda brasileira, o PT, por exemplo, aceitou perfeitamente o neoliberalismo mas não em todas as medidas. Na inclusão social, na intervenção do estado na economia, mas manteve o modelo de desenvolvimento extrativista e de exploração dos recursos naturais e destruição da natureza, expulsão dos indígenas, populações ribeirinhas, contaminação das águas, criminalização dos quilombolas, etc. Um modelo de desenvolvimento que é uma continuidade do modelo colonial, portanto foi tentar governar à moda antiga mas distribuindo alguma parte da riqueza. Acontece que esse modelo esgotou-se porque o boom das commodities, o alto preço dos recursos naturais, terminou como sempre num prazo de 10 a 15 anos: daí a crise.
Muitos jovens hoje dizem que não são nem de esquerda nem de direita, que esse debate já está ultrapassado. O que você tem a dizer a essas pessoas?
Acho que eles têm razão, sobretudo em função do que é a esquerda. Quando eles dizem que não são nem de esquerda e direita de fato o que está em crise é a esquerda, eles que sempre foram um campo aliado das forças de esquerda. A esquerda que temos hoje no mundo não é atrativa aos jovens, porque se regulou demasiadamente e intimamente com o capitalismo e o neoliberalismo. Deixou-se muitas vezes mergulhar na corrupção, não teve uma perspectiva de uma sociedade diferente, não criou uma utopia de que é possível sairmos desse modelo para outro. E sobretudo um modelo que respeite mais a natureza, que é algo extremamente sensível aos mais jovens que têm uma consciência mais ecologista hoje. Portanto, essa esquerda hoje é de fato difícil porque não olha para a direita mas também nem para a esquerda que tinha sido. Eles têm razão, porque sempre será uma posição de transição: ser de esquerda é ser anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcado. Então há razões para ser de direita e esquerda, o que acontece é que a esquerda por vezes pela pessoa ser capitalista pactua com o colonialismo, o racismo e até com o sexismo. Essa esquerda não me serve, temos que inventar outra.
Pessoas de esquerda fundadoras do PT se dizem de esquerda, no entanto suas práticas cotidianas, seja na sua própria família ou na formação de políticas públicas, na verdade se encontram não tão à esquerda assim. As pessoas não se identificam. Como identificar alguém de esquerda num mundo de concessões?
Isso é um ponto importante para os jovens, porque querem se ver com mais coerência. Quer dizer, o operário e um oprimido não podem ser uma pessoa de casa. Um professor que se diz de esquerda não pode dar aulas totalmente conservadoras sem dialogar com os estudantes, não ligando nada aos seus problemas. Há muita gente que politicamente é de esquerda e socialmente é fascista ou reacionária. Acontece que a juventude está extremamente alerta para isso, e não aceita essa incoerência. Está a dizer que se vocês querem ser desta esquerda eu não quero, e eu também não.
boaventura na mesaConversamos com uma amiga que trabalha com o combate a fome no Brasil, e ela disse que as respostas ao problema capitalista não vêm nem do mundo desenvolvido da Europa e América do Norte nem dos países periféricos ou BRICS. Vêm dos países escandinavos, onde estão colocando diferenças de salários e outras políticas pós capitalistas. O que você acha?
Não é um grande sonho, efeito de certo paradigma de esquerda, que é esse dos países nórdicos porque são aqueles onde se avançou mais a social democracia. Realmente combinaram altos níveis de produtividade com altos níveis de proteção social, basicamente é este o modelo. Mas é preciso saber que este modelo só foi possível porque aquela forma de desenvolvimento foi produzida às custas da exploração, do saque, da violência que se fez nos países do sul onde extraíram os produtos naturais. Não podemos colocar os países nórdicos no céu, porque eles fizeram o céu às custas de produzir o inferno no sul. Foi assim em toda a Europa colonialista desde sempre, então seria muito bom criar um sistema nórdico desde que ele não se alimentasse da escravatura, das fábricas de Bangladesh, do trabalho escravo aqui em São Paulo, onde tem milhares de bolivianos nessa situação, etc. Então, é evidente que temos de olhar o mundo em seu conjunto e não dizer que esse é o modelo. É o modelo a custa de quê? Às custas dos outros.
Enquanto pesquisador e professor universitário, quais são as pesquisas e questões que têm lhe preocupado e motivado ultimamente?
Estamos fazendo um grande projeto financiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa, que procura identificar no sul global, no sul anti imperial, porque as elites do sul geralmente são piores que as do norte, quais são as inovações que estão surgindo através das lutas sociais. Quais aprendizagens globais podemos apreender, como as lutas dos povos indígenas da Bolívia, andes e Equador, ou dos camponeses e urbanos aqui no Brasil, na Índia, África do Sul e Moçambique. Mostraremos que tem muita coisa nova que não se conhece ou é identificada. Mas podemos identificá-las se trabalharmos junto às comunidades. Não precisa ser as mais remotas, por vezes é no pé da nossa casa ou na nossa rua. Há muita inovação, muito trabalho criativo de lutar por outras formas de diversão, de democracia e dignidade. E não apenas de direitos humanos, que é uma coisa muito eurocêntrica, e outras formas de regulação da vida social e do próprio Estado. Temos muitas experiências daquilo que eu chamo de zonas de liberdade do capitalismo, zonas urbanas, moedas locais, bancos comunitários, economia solidária, hortas urbanas, gerenciamentos comunitários, tanto no trabalho como nas trocas diretas que são inovações. Elas sinalizam para embriões de um futuro diferente. Estamos tentando captá-las numa pesquisa contra hegemônica, porque as pesquisas hegemônicas invisibilizam tudo isso. Queremos trazer essa discussão.
Essas transformações anticapitalistas no mundo também são globalizadas?
Aparece em muitos locais do mundo, mas não é globalizado nos termos que o capitalismo coloca. O Fórum Social Mundial, por exemplo, é globalizável na medida em que muita gente está aqui mas não tem dinheiro para viajar nem fala nenhuma língua colonial. O que é importante é termos redes de conhecimento, que permitam articular em rede tudo isso que é local. Porque o novo global é essa rede desses locais e todas essas energias que estão por aí, e não podem ser desperdiçadas porque são experiências humanas de alta qualidade.
É preciso repensar a cultura política, os mecanismos do Estado em termos de participação da sociedade? A democracia precisa ser qualificada?
Obviamente que precisa, porque essa democracia representativa foi sequestrada por antidemocratas e, portanto, não está a se defender do capitalismo nem do colonialismo e patriarcado. E é preciso complementá-la com uma democracia participativa, mas genuinamente participativa. A primeira coisa é que ela tem de existir dentro dos partidos, esses partidos tal qual existem não têm futuro porque apregoam a democracia participativa mas são dominados por oligarquias partidárias e não têm nenhuma participação dos cidadãos que é fundamental. Foi assim que procuramos instrumentos dentro do partido Podemos na Espanha, com o qual trabalho intensamente, com essa ideia de que a democracia participativa está dentro do próprio partido. Há círculos de cidadãos que ajudam a formular as políticas, são eles também que ajudam a eleger e nomear os candidatos que depois vão à eleição. Se não houver democracia participativa dentro dos partidos políticos nunca haverá democracia participativa. Estou a assistir aqui em Porto Alegre uma desconstrução completa da democracia participativa, que eu estudei nos anos 90. Ela praticamente está a assumir todos os defeitos da democracia representativa e não tem nenhuma das virtudes, é uma perversão. Levam ônibus e pessoas para as comunidades para votarem e participarem no orçamento participativo: isso já é manipulação, não é democracia participativa, é uma farsa. Então é evidente que é profundamente necessário reformular a democracia.
Você tem batido muito na tecla da questão da natureza, dos indígenas, quilombolas e temas afins. É uma prioridade para a esquerda essa questão ambiental?
Porque é o futuro. Sabemos muito bem que se não houver uma luta ecológica e continuarmos com esse modelo de desenvolvimento obviamente não será possível a vida na terra. Em novembro em Paris miseravelmente os governos não conseguiram resistir à pressão dos EUA, em grande medida chegaram a compromissos vinculantes no que respeita a 2° no máximo ou 1,5° até 2030. Para isso, era preciso deixar no subsolo 80% do petróleo e do carvão que atualmente é explorado e não aceitam. Por isso penso que os indígenas são importantes, não é porque eles vêm do passado e sim o futuro. São os guardiões da natureza, não é por acaso que cerca de 80% da biodiversidade está em seus territórios. Por isso estamos nessa situação.
No Brasil houve uma sequência de conferências para debater a comunicação, mas acabou sendo engavetado esse processo. Qual o papel da mídia no mundo contemporâneo?
A mídia corporativa é hoje o grande partido da oposição a todo governo progressista, a toda ideia de distribuição social. São pelo poder que têm um grande fato de hegemonia ideológica de direita e, portanto, devem ser regulamentadas. Mas há dois tipos de regulamentação: a reacionária, que visa controlar os conteúdos, que a Polônia está fazendo neste momento e penso que é o pior regresso ao fascismo que se pode imaginar; e a outra é para garantir efetivamente a pluralidade das opiniões dentro das comunidades, isto é, que não seja apenas uma visão e haja outras formas de ver o mundo e não tenha concentração de mídia. Que se permita que os jornalistas não trabalhem só na banca e nas corporações, e se protejam, subsidiem, financiem meios alternativos de comunicação que possam ter mais expansão e chegar a mais gente com mensagens diferentes. É uma regulação para garantir a igualdade de oportunidades de fazer comunicação, que não temos hoje.

http://fazendomedia.org/temos-que-inventar-outra-esquerda-afirma-boaventura-souza-dos-santos/

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