Achar a porta que esqueceram de fechar.
O beco com saída.
A porta sem chave.
A vida.
Paulo Leminski
No debate apaixonado sobre o impeachment, o risco é nos afogarmos na superfície. Para analisar a crise brasileira com alguma profundidade, na perspectiva de um futuro transformado, é preciso ir além da simplificação maniqueísta, que divide o mundo entre linchadores e adoradores, “coxinhas” e “petralhas”.
Não é no grito que se constrói o convencimento.Slogans são necessários para animar a massa, sem dúvida, mas não explicam muito, por necessariamente sintéticos. O Brasil ouve duas narrativas predominantes para explicar a crise e afirmar supostas saídas imediatas: uma com a continuidade de Dilma, outra com a assunção de Michel Temer. Ambas insuficientes, parciais.
Luta pelo poder
O intenso debate sobre o impeachment, no qual a paixão tem superado a racionalidade, com seguidas cenas de intolerância explícita, não abre espaço para uma questão fundamental: há mesmo dois projetos antagônicos de organização da sociedade brasileira em disputa? A prática dos governos de Lula e Dilma diferenciou-se decisivamente da era FHC? Sem dúvida, os programas sociais e as iniciativas para ampliar o consumo interno nos anos do lulopetismo foram mais significativos, mas há uma complementaridade entre as gestões. FHC consolidou o controle da inflação e avançou nas privatizações; já Lula (e Dilma, em menor escala) cuidou do “andar de baixo”, costurando políticas para setores marginalizados sem afetar o “andar de cima”. Assim, a era Lula foi reconhecida e assimilada pelo grande capital, ainda que este, por óbvio, se identificasse mais com o tucanato. De todo modo, em ambas as épocas o setor rentista (sobretudo os grandes bancos) teve lucros extraordinários. Sequer uma reforma tributária que gravasse operações financeiras, patrimônio e herança dos mais ricos foi realizada.
No plano da política, não se fez nenhuma reforma profunda desde a promulgação da Constituição Cidadã. A chamada “Nova República”, apesar dos princípios de democracia participativa da Carta Magna, derivados do ascenso dos movimentos populares nos anos 1980, consolidou um padrão clientelista, patrimonialista e corrompido de fazer política. Tanto o PSDB, que nasceu de um questionamento ao fisiologismo genético do PMDB, quanto o PT, que nasceu e cresceu buscando renovar os costumes políticos do Brasil, não mudaram o sistema: adaptaram-se a ele, inclusive à sua corrupção estrutural, endêmica.
No oceano do estado oligárquico de direito as marés de lama são sucessivas. A destituição de Dilma, liderada por um bloco social e político que até há pouco a apoiava, é mera disputa de poder, para controlar a máquina do Estado e o orçamento público sem fazer qualquer mudança estrutural. Michel Temer e seus apoiadores têm pauta regressiva, de evidente retrocesso.
É a economia, estúpido!
A iniciativa política do impeachment não prosperaria se não tivéssemos inflação (10,5%), desemprego (9,5%), com 1,3 milhão de trabalhadores com carteira assinada sendo despedidos nos últimos doze meses (8,5% na indústria) e redução de programas sociais. Um em cada cinco jovens brasileiros entre 18 e 24 anos está desempregado. Dados da Pnad/IBGE revelam que a renda do trabalho caiu (-3,2% em 2015) e a histórica desigualdade social brasileira, que vinha sendo reduzida paulatinamente desde 2000, voltou a crescer (- 3,7% na taxa de Bem Estar, segundo a FGV Social). A perda média de arrecadação dos entes estatais foi de 13% no ano passado. Vale lembrar que nossa economia liberal-periférica é vulnerável às oscilações do mercado internacional, e a queda dos preços das commodities tem forte impacto na nossa realidade econômica nacional.
Também no enfrentamento dessa crise as propostas econômicas de Dilma e Temer se assemelham (não por acaso têm o mesmo principal conselheiro: Delfim Netto): redução do gasto público, manutenção de altas taxas de juros (as maiores do mundo!), inclusive para o consumidor (o que multiplica no crediário por 2,4 vezes o preço à vista), redução de direitos trabalhistas, com prioridade do negociado sobre o legislado, fim das vinculações constitucionais orçamentárias para Educação e Saúde e privatização de tudo o que ainda for possível.
Com Michel Temer/PMDB, é verdade, a ortodoxia liberal seria ainda maior: violento “ajuste”, autonomia total do Banco Central e desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo e deste em relação à variação do PIB. Bem do jeito que o alto patronato quer. Como diz Roberto Leher, reitor da UFRJ, “um ajuste fiscal de proporções gregas” (a despeito da admirável resistência do Sryza; Tsípras de novo denuncia a troika).
Estelionatos eleitorais
Reconheçamos: as duas forças que disputaram o segundo turno do pleito presidencial de 2014, o PT e o PSDB, praticaram estelionato eleitoral. Dilma por ter apresentado propostas, no primeiro ano de seu segundo governo, que negara na campanha, e muito aproximadas do ideário de seu adversário, o tucano Aécio Neves. Lembre-se que Joaquim Levy, seu poderoso ministro da Fazenda, tinha sido consultor econômico do programa do PSDB, e vinha da banca privada. Por outro lado, os projetos que chegaram ao Congresso, rigorosamente dentro do arcabouço da contenção de gastos públicos e incidindo, de imediato, sobre os trabalhadores, enfrentaram forte resistência, entre outros, do... PSDB, que na campanha defendera exatamente essas medidas.
Outra semelhança, e que dá base a campanhas eleitorais enganosas (de “estelionato ideológico”), é o seu financiamento empresarial milionário, de que os “polos” em disputa sempre desfrutaram. Noticia-se que empreiteiros delatarão, na Lava-Jato, caixa 2 para a chapa Dilma/Temer em 2014. Isso, se provado, pode resultar em cassação da chapa (e dos mandatos em curso) pelo TSE. O que se deve apurar também é se esses grandes financiadores, que contribuíram para outras campanhas, como a de Aécio, operaram com caixa 2, como de ilícita praxe, nessas outras “parcerias”.
Jatos certeiros
A Operação Lava-Jato tem um enorme mérito: pela primeira vez o conluio histórico entre grandes empresas corruptoras e partidos e políticos corruptos está sendo desnudado. Pela primeira vez os “colarinhos brancos”, tidos como intocáveis, foram para a cadeia. A famosa lista da Odebrecht, que o juiz Sérgio Moro se apressou em colocar sob sigilo, atingiu praticamente todas as legendas partidárias. Entre doações legais e ocultas de campanha, está a exigir que nada menos que 316 figuras públicas se expliquem. Escancara-se um modus operandi de três décadas! Dos idos dos anos 1980, como revelou a ex-secretária Conceição Andrade, aos tempos atuais, como descreve a atual secretária Maria Lúcia Tavares, apontadoras das planilhas da empreiteira – antes anotadas à mão, agora digitadas.
Também é forçoso reconhecer que, de todos os figurões da política indiciados na Lava-Jato, ou citados nas delações, Dilma é das menos referidas. Delcídio, inclusive, chegou a considerar que o fato dela desmontar o esquema de Cunha em Furnas está na origem do ódio deste a ela. Ainda segundo a delação de Delcídio, Dilma resistiu à nomeação de João Augusto Henriques, lobista do PMDB “apadrinhado” por Michel Temer, para a diretoria internacional da Petrobras.
Dois perigos, porém, rondam a Lava-Jato: a articulação dos poderosos atingidos para conter suas ações, na medida em que o principal alvo, o PT, já foi atingido fortemente, e o “estrelismo salvacionista” e autoritário de alguns promotores e do juiz Moro, incensados pela mídia espetaculosa. Como destacou o ministro Teori Zavascki, do STF, “é filme já visto isso de ações ilegais, mesmo bem-intencionadas, provocarem anulação de investigações importantes”. Ele citou as Operações Castelo de Areia e Satiagraha como exemplos. Alertam os renomados advogados Tales Castelo Branco e Fernando Castelo Branco, em artigo na Folha de S.Paulo (23 mar. 2014): “a correta persecução penal, seguindo o devido processo legal, não pode, de tropeço em tropeço, estar calcada em medidas ilegais de força, capazes de agradar a uma parcela da opinião popular (não confundir com opinião pública), mas que apenas desservem aos preceitos constitucionais e à democracia”.
Corrupção histórica
Na nossa sociedade de classes, a corrupção não é um acidente. Muito menos, como quer o propalado “moralismo udenista”, derivada da “má índole” do gestor público. Esse moralismo de fachada atribuía às virtudes individuais do sujeito incorruptível o condão de acabar com toda a roubalheira sistêmica. Uma sociedade marcada, desde 1500, por conquista violenta, dizimação de nativos, escravidão negra, extrema concentração da propriedade (latifúndio) e patriarcalismo constitui-se, a si mesma, como corrompida em seus valores fundantes. Não por acaso, um mote popular no Império já versejava “quem rouba pouco é ladrão/ quem rouba muito é barão”. O capitalismo, que tem como êmulos o lucro do negócio e a competição, também abriga corrupção. O socialismo real, com seus politburos1 e dachas2 dos dirigentes do partido único, igualmente se degradou.
É de se destacar que muitos políticos – do mundo inteiro – têm contas em offshores, e operam nesses esquemas internacionais ocultos e milionários. A Panamá Papers aí está a revelar esses esquemas, que vão de Vladimir Putin a Eduardo Cunha, sempre ele.
Algo resta claro, desde já: o partido dos grandes grupos econômicos e dos consórcios das empreiteiras é o... do governo. Nacional, estaduais, das grandes cidades. É ali que os propinodutos são instalados, com a leniência dos partidos que chegam ao poder.E que precisam de dinheiro grande para ali se perpetuar. Os desvios eleitorais oportunizam os patrimoniais. Afinal, “a carne é fraca”...
Impeachment e distopia
Impeachment tem previsão constitucional. É o ato mais grave do nosso ordenamento político, por isso deve ser utilizado com muito critério. Este, de Dilma, tem vários defeitos congênitos: foi acatado por um presidente da Câmara ilegítimo, réu no Supremo por corrupção passiva e lavagem de dinheiro (por enquanto). Cunha deu continuidade ao pedido de advogados ligados aos derrotados de 2014 por mero espírito de vingança, por retaliação ao PT, que não o defendeu no Conselho de Ética da Casa, que analisa representação do PSOL e da Rede contra ele. Também não há fato objetivo doloso que incrimine a presidenta, que, até aqui, sequer é investigada na Justiça por qualquer acusação. Mesmo nesse canhestro pedido de impeachment não há menção a corrupção, com a qual parte significativa do Congresso que a julgará tem intimidade.
O conteúdo da denúncia para destituir a presidenta – decretos de suplementação orçamentária e “pedaladas” fiscais – não caracterizam objetivamente crime de responsabilidade. Há insuficiência jurídica, portanto. Janaína Pascoal, uma das autoras do pedido de impeachment, disse que “as manobras fiscais criaram um ambiente ilusório que favoreceu a presidente na sua reeleição”. Ora, em sendo assim o correto seria pedir igualmente a destituição do vice Michel Temer, beneficiário na chapa dessa “maquiagem enganosa”. Como já aconteceu, aliás, e Cunha engavetou. O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, determinou que a Câmara, por isonomia, examine este pedido.
Nas ruas, as manifestações pelo impeachment, com seu aparato garantido por federações empresariais, com a incontestável simpatia de grandes grupos da mídia privada, criam uma simbologia de ampliação, tomando para si as cores da bandeira brasileira, como se ali falasse a Nação. O discurso do Estado corrupto e ineficiente – como a precariedade das políticas públicas confirma – leva água ao moinho do Estado mínimo. Mas a raiva destilada e a defesa não tão oculta do status quo, repelindo os do “pão com mortadela”, revelam ausência de algo fundamental para a relevância histórica dos grandes movimentos de massa: a esperança, a dimensão da utopia.
Por outro lado, as manifestações lideradas pelo PT e pela CUT, também expressivas, embora menores, têm o mérito de reagrupar uma esquerda dispersa (muito pela perda da fronteira ética e programática dos governos petistas), mas se desenvolvem em âmbito defensivo, de preservação de um governo que é ruim e nem muito “nosso”. Um mar vermelho que há muito não se via, mas cheio de contradições: ao clamor pela “guinada à esquerda” na praça, Lula e Dilma respondem articulando sua sobrevivência no varejo fisiológico com a direita parlamentar no Palácio...
É preciso arrancar alegrias ao futuro
Derrubar a presidente através de um Congresso tão questionado para que seu vice assuma não significará nenhuma alteração substantiva. Em alguns aspectos, aliás, representará retrocesso. Portanto, o impeachment é instrumento legal que poderá ser utilizado de maneira ilegítima, pelos interesses que seus efeitos abrigam. Trata-se de uma repactuação das elites econômicas e políticas, para quem Dilma deixou de ser funcional.
Não basta dizer “não” a essa armação e seus condutores. É preciso denunciar o sistema que a produz e operar por mudanças de fato. Certamente elas não virão tão já, pelo que indica a atual correlação de forças. Mas precisam ser anunciadas, sob pena de se consolidar o embuste. Os que, com compreensível indignação, clamam contra a corrupção, não podem ser enganados mais uma vez.
Não podemos interditar nenhum debate sobre alternativas futuras. Nosso “não” ao impeachment precisa estar grávido de “sins”, de perspectivas mudancistas. Com Dilma ou Temer os grandes impasses permanecerão.
Renúncia imediata de Dilma e Temer resultaria em nova eleição presidencial daqui a noventa dias, que seriam organizadas sem a assunção de Cunha, a ser afastado pelo STF, como já pedido pelo PGR. É o que propõe a Folha de S.Paulo, em editorial de capa de sua edição de 3 de abril de 2016. Mas pressupõe gesto pessoal de desprendimento de um e outro (haja “espírito cívico”!), e agilidade do Supremo. A Islândia não é aqui...
Tudo o que se tem aventado, inclusive eleições gerais, demanda alterações constitucionais que o atual Congresso não fará, já que não estamos em situação insurrecional. Depende também dos eleitos em 2014, inclusive os congressistas, abrirem mãos de seus mandatos, o que convenhamos, não é nada provável. Mas, como proposta política, clamor por “eleições gerais” tem o mérito de instigar, provocar, cutucar os “estabelecidos”. Não podemos abrir mão de ousar. Sem esquecer que paciência às vezes é virtude revolucionária: “não se afobe não, que nada é pra já...” (Chico Buarque).
É preciso reiterar a importância decisiva, numa perspectiva de futuro mais igualitário, justo e democrático para o país, de uma reforma tributária progressiva, de uma reforma política democratizante de fato e da construção de um novo modelo econômico que nos livre da situação liberal-periférica em que nos encontramos. Tudo isso precisa ser construído em fóruns abertos à presença popular, sem “espírito condominial” e “trincheiras de dogmas” (velho vício das esquerdas), reunindo as forças progressistas e as organizações cidadãs com novas pautas, dispostas a virar essa página final de um processo exaurido.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de ressignificar o próprio ideário socialista, que hoje precisa incorporar, com centralidade, o cuidado ambiental e a democratização radical de todas as relações na sociedade, para o que os espaços virtuais tanto contribuem. Urge a construção de um novo modo de se relacionar com a natureza, vale dizer, de produzir, consumir e reaproveitar.
As forças que reagem ao impeachment de Dilma, em defesa não de seu péssimo governo, mas da democracia, precisam se manter articuladas, como ensaiam a Frente Povo Sem Medo e a Frente Brasil Popular. Mudar de governo, por si só, não muda a realidade. A luta é longa: comecemos já!
Chico Alencar
Professor de História e deputado federal (Psol-RJ).
* Artigo escrito com a preciosa colaboração da equipe do mandato.
1 Politburos eram os comitês executivos dos Partidos Comunistas do Leste Europeu.
2 Dachas eram “casas de campo” utilizados pelos dirigentes do partido único.
Foto: Agência Brasil
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