Alimentar milhões de brasileiros passa por fortalecer a conexão entre a
cidade e o campo. Pensar a segurança alimentar e nutricional é pensar no
acesso, distribuição, disponibilidade, consumo e, portanto, formas de
abastecimento. É estimular a diversificação de culturas.
Milhares de toneladas de alimentos perdidas, escassez de comida,
disparada de preços. A paralisação dos caminhoneiros, iniciada na semana
passada, e suas consequências, quase que imediatas, em termos de
abastecimento é uma oportunidade para refletirmos sobre como organizamos
os processos de produção e comercialização de alimentos no Brasil.
Na conta dos produtos perecíveis perdidos entram frutas, verduras,
legumes, laticínios e carnes. Também estão sendo enfrentadas
dificuldades para alimentar aves, suínos e bovinos, uma vez que o
movimento dos caminhoneiros compromete o acesso a insumos. O clima de
insegurança alimentar vivido nos últimos dias, entretanto, está longe de
acabar. Após a normalização do transporte no País, a crise gerada pelo
desabastecimento trará efeitos na inflação dos preços dos alimentos,
decorrente da instabilidade provocada por um modelo de produção que
privilegia a grande produção e as grandes redes varejistas. O sistema
alimentar hegemônico se organiza a partir da lógica do circuito longo de
produção e consumo. No circuito longo, a produção em grande escala está
diretamente associada a um sistema complexo de logística que geralmente
envolve percursos extensos e concentração do varejo em grandes
unidades.
Sem consertar as causas, não há como tratar as consequências. A
insegurança no abastecimento gerada pelo movimento dos caminhoneiros
demonstrou a urgência da adoção de uma política de abastecimento
alimentar capilarizada que fortaleça os circuitos curtos de produção e
consumo. Os circuitos curtos estabelecem o contato, com poucas etapas,
algumas vezes nenhuma entre produtor e consumidor. A comercialização é
feita em feiras, lojas de associação de produtores, venda direta para
grupos organizados, cestas entregues em domicílio, entre outras formas
de comercialização. Permitem reforçar o aspecto público e a valorização
de pequenos produtores, produtores agroecológicos e orgânicos e
cooperativas.
Em um processo onde há dinamismo econômico local aliado a uma forma
de produção sustentável, reduzindo ou eliminando por completo os
agroquímicos da cadeia de produção, pratica-se uma agricultura menos
intensiva, familiar e sustentável. A opção pelos circuitos curtos de
produção reduz a “pegada ecológica” não só no modo de produção, mas
também na cadeia de comercialização, diminuindo substancialmente a
emissão de dióxido de carbono na atmosfera e a dependência dos
transportes que se utilizam de combustíveis fósseis. A experiência dos
circuitos alimentares de curta distância possibilita conectar e
aproximar os locais de produção, armazenamento, distribuição e consumo
de alimentos saudáveis e naturais. Em diferentes cidades, moradores se
organizam para fazer compras coletivas de alimentos naturais e saudáveis
diretamente de produtores agrícolas locais ou de regiões próximas ao
local de moradia.
Também testemunhamos o fortalecimento de organizações e grupos
informais que promovem a agricultura urbana, estruturando hortas
comunitárias em praças, parques, escolas e terrenos ociosos, criando
alternativas de geração de renda, promovendo a ressignificação e a
ocupação cidadã de espaços públicos, além do resultado direto de
aumentar a disponibilidade de alimentos. Em sintonia com a busca por
maior segurança alimentar e nutricional, o Plano Diretor Estratégico do
Município de São Paulo, aprovado em 2014, redefiniu zonas rurais com o
objetivo de ampliar a produção e consumo local de alimentos naturais e
saudáveis, especialmente nas áreas de interesse ambiental e de proteção e
recuperação de mananciais. A experiência demonstra a importância da
atuação do poder público na construção de políticas de fomento à
agricultura local, urbana profissional (comercialização) e de vizinhança
(complementação alimentar).
Quando a comida vira objeto de especulação, fica difícil o seu acesso
de maneira justa. Entre as recomendações da 5ª Conferência Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em 2015, em Brasília, está a
instituição de uma política soberana de abastecimento alimentar, cujos
componentes essenciais são a reestruturação das centrais de
abastecimento e o fortalecimento da Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab). Não se pode minimizar os riscos de crise de abastecimento
perante situações de calamidade ou conflito que dificultem ou impeçam a
circulação dos meios de transporte utilizados para ultrapassar a
distância entre a produção e o consumo, nos modelos tradicionais. É
necessário fortalecer uma política de estocagem de alimentos, com o
estabelecimento de plano de contingência que permita garantir o
abastecimento da população brasileira em períodos críticos, com
estabilidade de preços. Movimento na Central de Abastecimento do Estado do Rio (Ceasa-RJ), em Irajá, Zona Norte da cidade.
Alimentar milhões de brasileiros passa por fortalecer a conexão entre
a cidade e o campo. Pensar a segurança alimentar e nutricional é pensar
no acesso, distribuição, disponibilidade, consumo e, portanto, formas
de abastecimento. É estimular a diversificação de culturas. É buscar a
readequação da legislação sanitária de alimentos de origem animal e
bebidas à produção artesanal, tradicional e familiar. É fortalecer o
Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. É garantir do acesso
à terra e ao território, requisito fundamental para a redução das
desigualdades no campo brasileiro e para a garantia do Direito Humano à
Alimentação Adequada.
No sábado (27), no auge da crise de abastecimento, fui ao Ceasa de
Brasília temerosa do que (não) iria encontrar. Meu circuito é Mercado
Orgânico e Mercado da Agricultura Familiar ― dois locais onde comprovo
todas as semanas que, comprando do produtor, os preços de alimentos
saudáveis sem veneno são justos e acessíveis. Ao me deparar com bancas
repletas de alimentos e sem nenhum centavo de aumento no preço,
perguntei a uma das produtoras como estava lidando com a “crise”. Ela me
respondeu: “Nossa chácara é perto, tinha um pouco de gasolina na
caminhonete, aí deu para vir com tranquilidade”. Simples assim.
* Elisabetta Recine é presidenta do Consea, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora.
https://diplomatique.org.br/por-que-uma-crise-de-abastecimento-em-tao-poucos-dias/
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