Klaus Mitteldorf / Divulgação
Em 2018, os Racionais MC’s completam 30 anos. Mas Mano Brown, líder do grupo e atração com show solo no Planeta Atlântida, não quer saber de comemoração. Diz o rapper que os fãs não estão mais merecendo o trabalho do grupo responsável por hinos de uma geração, como Nego Drama, Diário de um Detento e Capítulo 4 Versículo 3. Paulistano que cresceu no bairro do Capão Redondo, Brown reclama do conservadorismo e do individualismo que chegou à periferia. Contesta os discursos moralistas vigentes, mas demonstra empolgação ao falar de artistas como Anitta, Rincon Sapiência, Emicida, Ludmilla e Iza, que, afirma, “estão emergindo do inferno”. — A nova música popular brasileira são essas pessoas — sentencia.

Em dezembro de 2016, você lançou o disco solo Boogie Naipe, com uma pegada funk, soul e R&B. O disco foi muito comentado principalmente porque, de certa forma, é um contraponto à música dos Racionais MC’s. Como você vê esse trabalho, pouco mais de um ano depois?Nesse ano que passou, fiz alguns shows com a banda do Boogie Naipe. Não foram muitos, mas esses poucos foram memoráveis. A diferença é que a força não está mais nas pessoas por trás das músicas, e sim nas músicas em si. E, ao mesmo tempo, está nas pessoas que tocam. Não está no cara que canta, no cara da capa do disco. O rap é muito individualista: o MC está na capa do CD, e os demais, não. No caso da banda, na hora da execução, sem um, o outro não é nada. Então, a gente vê que não é nada na música ainda, que há muito caminho a percorrer. Quando você se enxerga no meio de 14 pessoas, percebe que é só mais um. Você fala: “Sou igual aos caras”. É diferente do contexto dos Racionais, no qual o Mano Brown é aquela figura que tem de estar ali, implacável, posicionado, uma coisa meio, assim, política. No Boogie Naipe, o que prevalece é a música, e não o Mano Brown. Não é a polêmica, não é a notícia. É a música.
Você recebeu muitas críticas com o Boogie Naipe?
O momento é de radicalismo político. Na internet, você pode ser um assassino com as palavras sem ser penalizado por nada. Você pode destilar o seu ódio. Essas músicas novas, antes do lançamento do disco, estavam sofrendo ataques, como se nada mais que eu fizesse fosse relevante, por causa dos Racionais. Mas, depois que o disco saiu, as pessoas ligadas à música, não só à política, foram muito maiores, mais numerosas do que os críticos. Então, posso dizer que o disco foi um sucesso.
Como será tocar no mesmo festival de artistas pop como Anitta e Pabllo Vittar?
São grandes nomes. Eu as reverencio, são gente que trabalha muito, que luta para estar onde está. São artistas verdadeiros. A Anitta, a Ludmilla e a Iza são mulheres guerreiras. Pabllo Vittar está defendendo a bandeira dela, que não sei qual é, mas, se tem, está aí, representando. A gente tem que entender que essa é a nova era. Há várias lutas aí, postas. A do negro, a da mulher, a do índio, a luta contra a homofobia. Respeito todas, e estou aí para aprender. Estamos em nova fase. O que passou, passou. E tem de provar em campo. Sou um cara que ainda tenho valor na música, não só no discurso social.
Os Racionais completam 30 anos em 2018. Como é olhar para trás e pensar na história do grupo?
Racionais MC’s não é mais algo meu. Vejo a banda como uma coisa que ajudei a criar, mas que bateu asas e voou. É como um filho que você cria para o mundo: não é mais seu. A gente não tem mais direito de escolher a roupa que quer, a batida que quer, não pode mais falar o que quer. Quando os Racionais surgiram, lutávamos para ter liberdade para falar, para ter espaços que não tínhamos. Passaram-se 30 anos. E alguns fãs da banda se tornaram conservadores. Muitos, hoje, são de direita. Nossos pensamentos já não batem mais. Não sou contra gay, contra punk, contra candomblé, como pessoas que eram fãs da banda demonstram ser. Os Racionais foram criados por quatro garotos que tentavam sobreviver, que não tinham ideia de como era o mundo. Só sabíamos o que era a favela. Muita coisa mudou, e hoje eu questiono a importância dos Racionais num mundo desses. Aqueles ideais que o povo defendia, o povo esqueceu. Com aquele discurso que tínhamos em 1990, hoje, os Racionais seriam engolidos pela periferia. Seriam rejeitados. Porque, depois de dois governos Lula e de um governo Dilma, mudou a mentalidade da periferia. Não tem como desvincular os Racionais da política, a banda sempre foi atrelada ao momento político do país. E qual é o momento político do país agora? A periferia passou a ser de direita. O rap virou algo de direita, conservador. Aquele rap da época dos Racionais, hoje, é um rap religioso, moralista, que não conversa com a revolução que precisa ser feita atualmente.

A periferia está votando em polícia, se escondendo dentro de igreja e atrás de pastor. Deus, família: isso é o que fala o discurso da direita no Congresso. Que é homofóbica, racista. Os discursos se misturaram

MANO BROWN

E como sensibilizar as pessoas nesse contexto? Com a música que você está fazendo agora?
Não sei se minha música é um caminho. As músicas novas, sim. As dos Racionais talvez tenham servido em algum momento. Hoje, a maioria está reclamando porque não tem iPhone. Você tem realidades distintas. Hoje, a luta que as pessoas dizem ter é individual. Não vejo mais luta de classes. A luta é por conforto. A periferia está pedindo segurança, votando em polícia, se escondendo dentro de igreja e atrás de pastor, não assumindo a parte que lhe cabe. Então, qual seria a importância dos Racionais hoje? Falar de Deus, de família? Não. Isso é o que fala o discurso da direita no Congresso. Que é homofóbica, racista, um monte de coisas. Os discursos se misturaram. A extrema-esquerda, hoje, virou direita, de tão à esquerda que está. A gente vai ter de rever os conceitos. Você pega os pensadores do movimento (hip hop): eles estão neutros. Porque, hoje, você é apedrejado por falar de Lula. É linchado na internet, junto à opinião pública. Então está todo mundo com medo. A gente sabe o que é bom para o povo, a gente sabe em que momento o povo esteve melhor ou pior. Eu tenho idade suficiente para dizer: vivi vários momentos e vi o Brasil muito mal. Já vi o negro neste país mal a ponto de alisar o cabelo, de clarear a pele, afinar o nariz. Mal a ponto de esconder onde morava, ter vergonha da mãe. A gente não vive mais isso. Hoje, o negro vive o orgulho, e o branco vive a vergonha do que fez. E muitas vezes as pessoas se confundem por isso.
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30 ANOS EM 2018. Os Racionais MC's, fundados em 1988. "Racionais, por mim, não gravava nunca mais", diz Brown (à direita na foto)
Como se adaptar aos novos tempos? Por exemplo, vocês não cantam mais algumas músicas consideradas machistas...
Não é se adaptar, não. Não me adapto. Só faço o que quero, nunca fui pelo sucesso. Não faço questão de aplauso. Faço questão de sair de cabeça erguida e ciente de que fiz de coração, que não estava ali interpretando um personagem. Não sou um personagem de mim, sou um cara real. Se eu estiver com raiva, minha raiva vai ser exposta. Se eu quiser falar de amor, vou falar. Não tenho máscara para agradar a maioria. Eu sou eu. Em alguns momentos, a maioria esteve comigo, hoje já não sinto isso. A maioria quer iPhone, tênis, segurança, internet. Não é como nos anos 1990, quando faltava comida nas mesas. Hoje as pessoas estão obesas, estão comendo demais, consumindo e bebendo lixo, ouvindo lixo. Assistindo lixo, curtindo lixo na internet, a vida dos outros, vida de celebridade. E deixam de lutar por si. Mudou o tempo. Não me adapto, não, a música continua sendo real, o que acontece é que às vezes a gente cansa da hipocrisia. Tem dois lados muito distintos aí. Tem o grupo de rap, que é pago para cantar uma música A, B, C ou D. O público está lá, o público vira o seu patrão. E tem o ser humano que está por trás da música, que pensa, que sente, que se preocupa, e que não se identifica com o momento que o Brasil vive. O que está havendo é que a favela não está pensando nada do que está vivendo. Está relembrando o passado, curtindo um flashback. Mas está vivendo uma vida diferente da que nós estamos cantando. Hoje, a favela tem outras prioridades, outros candidatos, outras inspirações. Quando a favela ouve as músicas dos Racionais, é por nostalgia, não mais por necessidade. E a gente sabia. Não fizemos aquelas músicas à toa. Sabíamos que tinha gente ali em depressão, sem vontade de viver, dentro de um barraco, na cela de uma cadeia. Eu sabia, convivia com isso, escrevi pensando nisso.
Mas não há nada para comemorar nesse aniversário de 30 anos dos racionais?
Não. Só há luto. Se vejo como a periferia pensa hoje, como o brasileiro pensa... estou de luto. Hoje é sexo, drogas e vida dos outros. Não há mais nem rock’n’roll, porque até a música hoje é dispensável. Música, hoje, é para consumir, chapar, ficar louco e já era. Você pode falar: nem todos são assim. Mas vê os números. Grandes artistas, grandes pensadores estão sendo esquecidos, apagados, varridos do mapa. Não é o Brown que está falando. É o mundo. A culpa não é minha. Quem levou o Brasil para isso foi o próprio povo. O povo elege quem quer. Consome o que quer, come o que quer, veste o quer. 
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Mano Brown
Você lançou uma música em dezembro de 2017 chamada Natal no Gheto. Como foi que ela surgiu e onde ela aparece a partir deste contexto que você está mencionando?
Foi uma música feita de coração, composta em quatro dias. É uma música temática para falar do Natal na periferia, das ambições, das desilusões, das necessidades, dos sonhos. É que hoje não interessa mais falar das coisas do coração. As pessoas estão mais de olho na marca da roupa que você está usando, nos óculos. Essa molecada, que é hype, que é o pessoal do hip hop atual, está mais preocupada com a aparência. Não tenho nada contra a nova geração, nada contra novos pensamentos, pelo contrário: sou o cara que abriu portas para novos pensamentos e novos pensadores. Mas o Brasil está indo para esse lado, para coisas de impacto descartáveis, fogo de palha. A coisa tem de explodir muito alto agora, mas só agora, depois não precisa mais.
Como você avalia a fase atual do hip hop no Brasil?
Têm surgido nomes bons. A melhor fase do rap é agora. Os melhores letristas da música brasileira estão no rap. É Djonga, Rincon Sapiência, que é impressionante, BK’, Luccas Carlos, Emicida, Criolo, Projota, Rael. São esses caras. Se você pensar no que está acontecendo a partir do social, de periferia, vai ver que a Anitta também, assim como a Ludmilla... É um povo, uma raça que estão sendo representados. Não consigo separar o rap da Ludmilla, da Iza, da Anitta. É um corpo só. É o povo caminhando junto. É uma geração emergindo das trevas, do esquecimento, do abandono, do racismo. O inferno da vida de uma pessoa é o abandono. Essas pessoas estão emergindo do inferno, onde elas morreriam anônimas, como muitos morrem, sem reconhecimento, sem valor. A nova música popular brasileira são essas pessoas.

Com aquele discurso que tínhamos em 1990, hoje, os Racionais seriam rejeitados pela periferia. O rap virou algo de direita, conservador. Aquele rap da época do Racionais, hoje, é um rap religioso, moralista

MANO BROWN

Por um lado seu discurso parece pessimista...
Não é verdade. Não sou pessimista; sou realista. Não sou um carro alegórico, de ficar jogando purpurina nas pessoas. O momento é pessimista. Quero que as pessoas analisem o momento. A geração atual é mimada, vive de computador, com seus telefones caros, tênis caros, roupas caras. Está preocupada com outras coisas, menos profundas. Esse é o mundo novo, e é nele que entra o movimento (hip hop). É uma geração que foi criada no governo Lula.
Um geração que talvez não tenha entendido o que se passou com ela?A juventude não está aí para entender nada. Está aí para tumultuar. Essa é a missão dos jovens. Você não pode exigir deles que entendam as coisas. Eles devem é sentir. E, se não sente, não adianta. Você não vai explicar para o coração como é que sente. Você sente ou não.
Você já conquistou muita coisa. Quais são suas ambições hoje?
Conquistei o quê? Conquistei anos de vida, parceiro. Sou perseguido por ser quem eu sou, isso sim. Sou perseguido dentro do movimento, tem bullying para ver se te varrem do mapa. Tem de ser forte para ficar. Sofro perseguição de vários lados, desde memes até atitudes racistas (quando, por exemplo, usou um filtro de gatinho, sem querer, em uma transmissão ao vivo no stories do Instagram, no início de janeiro). Não tem esse negócio de nada conquistado, não. Estou na ativa, estou jogando ainda. Estou aí, na atividade.
Mas o seu nome e o dos Racionais MC’s já estão na história da música brasileira.
Fama no Brasil é lixo, irmão. Se você não ganhar dinheiro com fama, não presta para nada. Quem tem fama vira alvo dos covardes. Famoso é alvo. No Brasil, fama boa é com dinheiro, só. Não recomendo a ninguém.
Pelo seu discurso, então, 2018 não será um ano de celebração.
Não. Celebrar com os seguidores de Bolsonaro me perseguindo? Meus fãs me traindo? Não tem nada para celebrar. É luto, meu parceiro. Os caras que eram fãs, hoje, me perseguem. Me chamam de maconheiro, defensor de bandido, petralha, Lei Rouanet – que nem sei como usa, nunca usei. Celebrar? É celebrar a vida, irmão. Celebro o baseado que fumo, a Chandon que estouro quando estou com alguém de quem gosto. Celebrar coisa coletiva não existe, o Brasil mudou.
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E como reagir nesse cenário de pressão e tantas ofensas?
Não é para todos os lados, não. É para quem defende o Lula, no governo de quem os mais pobres conquistaram muito. Quem faz média vive bem. Agora, para quem fala o que sente, fala a verdade do Brasil... A verdade pega mal. Se você comprar um carro novo e postar, mostrando que é seu, você está fodido. Você tem de andar a pé e dizer que não tem carro. Porque a mentira interessa mais do que a verdade no Brasil.
E os planos de lançar um novo disco dos Racionais, que estava previsto para o ano passado?Os caras têm de deixar os Racionais quietinhos. O pessoal não está merecendo os Racionais, não. Racionais é algo muito verdadeiro, é sangue no olho. É brabo, já pegou em armas. Racionais, para mim, é sagrado. Por mim, não gravava nunca mais. Minha música foi sempre ligada às lutas, ao povo, aos becos e às vielas. Aquele povo para quem a gente cantava não é o mesmo de hoje, aquele povo queria outras coisas. O Brasil mudou, e é com essas regras novas que vou jogar agora. Não vou jogar com regras antigas, não sou otário, se não os próprios caras que gostavam de mim vão me engolir, como já estão tentando fazer. A periferia está com muito medo, está votando em polícia porque conquistou as coisas no governo Lula e agora tem raiva de tudo o que soe ameaçador. Não concordo quando o rap critica o funk, quando o outro critica o gay ou o candomblé. Neste momento me sinto minoria. Preciso ter inteligência. Já fui só coração. Hoje, sou coração e cérebro.



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