quarta-feira, 11 de maio de 2016



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andrew johnson impeachment

Gravura ilustra o processo de impeachment contra o presidente Andrew Johnson no Senado americano, em 13 de março de 1868
São duas histórias. Primeira, um jovem senador norte-americano, chamado John Kennedy, quer se projetar. Quer realizar o sonho de seu pai e tornar-se presidente dos Estados Unidos. Casar-se com uma mulher bonita, com todos os sinais de membro da elite, como Jacqueline Bouvier, ajuda. Escrever um bom livro também - ou, pelo menos, publicar um bom livro. É Política e Coragem, em inglês Profiles of Courage. Seu tema: alguns políticos norte-americanos que tiveram a coragem de enfrentar a opinião de todos os amigos, aliados, concidadãos e defender o que achavam justo, mesmo pagando um alto preço por isso. Ganha o Pulitzer. Voltaremos ao livro.
Gosto sobretudo de dois episódios. Um é o de Sam Houston, o inventor do Texas, que separou aquele Estado do México e o integrou nos Estados Unidos. O grande herói texano. Mas em 1861, quando o País está para se dividir em função da escravatura, quando está para começar a Guerra de Secessão, os texanos querem se aliar aos demais Estados do Sul e seu governador - Sam Houston - quer continuar nos Estados Unidos. São semanas de descida aos infernos, para ele, até que perde e é cassado. Morre dois anos depois, ainda em plena guerra. Um derrotado.
Houston é lembrado e dá nome a uma das grandes cidades do Texas. Mas o outro episódio que lembro trata de um senador quase esquecido, Edmund Ross. A Guerra de Secessão acabou, os Estados voltaram a ser Unidos - só que Lincoln foi assassinado em 1865, logo após a vitória. Ele tinha escolhido como vice um sulista, de um Estado escravagista, só que um Estado que se manteve leal à União - Andrew Johnson. Mas Johnson, como presidente, cria problemas. O Congresso e os ministros que herdou de Lincoln querem continuar o trabalho de emancipação dos negros. Johnson quer pegar bem mais leve com os antigos rebeldes.
O Congresso vota então uma lei, proibindo o presidente de demitir ministros sem a autorização do Senado. Isso vai totalmente contra a Constituição presidencialista dos Estados Unidos. Johnson demite um ministro no começo de 1867. A Câmara começa o processo de impeachment. Ele chega ao Senado, onde é votado em maio. O País tinha à época 27 Estados, portanto, eram 54 os senadores; os dois terços necessários para condenar o presidente representariam 36 membros da Casa. Votam pela condenação 35. Um dos que se recusam a condená-lo, embora convicto membro da oposição ao presidente, é Edmund Ross. Ele considera as acusações injustas. O presidente tem sim, no presidencialismo, o direito de demitir seus ministros.
Ross arca com o custo de seu voto. Não é reeleito para o Senado. Demora a voltar à função pública. Mas não se arrependeu de sua decisão.
Por que contar esta história? Processos de impeachment são raros nos regimes presidenciais. Nos Estados Unidos, houve três contra presidentes. O primeiro - este que comentei - foi derrotado por um voto. O segundo, contra Nixon, foi encerrado com a renúncia do réu. O terceiro, contra Clinton (porque este teria mentido quanto a um adultério), foi a voto, mas também perdeu. No Brasil, o primeiro só ocorreu mais de um século depois da proclamação da República e agora estamos vivendo o segundo.
Mas são processos. São julgamentos. O julgamento de Andrew Johnson era essencialmente político. Mesmo assim, pelo menos um senador julgou de acordo com sua consciência e não com a conveniência partidária. Ser ético tem um preço, e Ross pagou por ele.
Volto ao livro. Política e Coragem se lê com prazer. Mas é uma obra ambígua. Se Andrew Johnson tivesse sido afastado, é possível ou mesmo provável que a emancipação dos negros tivesse chegado mais cedo, em vez de ter de aguardar até a década de 1960, quando outro presidente sulista, também chamado Johnson, de prenome Lyndon, promoveu uma intensa agenda de direitos humanos. Politicamente, teria sido melhor condená-lo. Mas o regime teria mudado de natureza. Teria virado um ornitorrinco, nem presidencial nem parlamentar. Sabe-se lá no que daria.
E quem escreveu o livro? Kennedy ganhou com ele o Prêmio Pulitzer. Mas com o passar dos anos se soube que quase todo ele tinha sido escrito por seu assessor Ted Sorensen. E essa descoberta veio junto com toda uma desqualificação do maior ídolo que os Estados Unidos tiveram na presidência, no período entre Franklin Roosevelt eBarack Obama. Difícil lembrar quando Kennedy entusiasmava as pessoas. Além disso, foi assassinado jovem. Nos anos seguintes, cresceu a convicção de que, tivesse vivido, os Estados Unidos não teriam feito sua guerra cruel e finalmente derrotada no Vietnã (eu concordo) nem teriam patrocinado a farra de golpes militares na América Latina, inclusive no Brasil (não tenho certeza). Foi homenageado com o nome do principal aeroporto de Nova York, JFK (que permanece), e com o nome do cabo de onde a NASA lançava seus foguetes (que depois voltou a se chamar Cabo Canaveral). Para piorar, num país moralista, sua fama de mulherengo eclipsou parte de suas qualidades. Tudo isso é irônico, quando evocamos um livro que é uma defesa da ética e de seus custos políticos.
Mas não importa: o livro sobrevive a seu não-autor. E na hora de julgar, é bom lembrar que as conveniências devem ceder lugar à consciência e ao caráter.

http://www.brasilpost.com.br/renato-janine-ribeiro/john-kennedy-e-o-impeachment--de-andrew-johnson_b_9885590.html

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