terça-feira, 7 de outubro de 2014

As lendas da ciência e suas referências fajutas

POR MAURÍCIO TUFFANI
15/09/14  15:27

Folhas de espinafre, alimento que há décadas erroneamente conhecido como um dos mais ricos em ferro. Imagem: Nillerdk/Creative Commons
Folhas de espinafre, alimento erroneamente conhecido como um dos mais ricos em ferro. Imagem: Nillerdk/Creative Commons
A ciência também tem suas lendas urbanas. Elas acontecem por meio da reprodução de alegações com referências vagas ou imprecisas em artigos científicos, uma prática cada vez mais frequente, destaca o pesquisador norueguês Ole Bjørn Rekdal, da Universidade de Bergen em um artigo a ser publicado na próxima edição da revista Portal: Libraries and the Academy”.
Rekdal critica a tolerância acadêmica às violações do rigor nas referências a conteúdos de outras fontes. Em seu estudo “Prática de citação acadêmica: um carneiro naufragado?” , já acessível pela internet, ele aponta uma “mentalidade de rebanho” na forma da aceitação passiva de opiniões mal explicadas que favorece as condições em que nascem e se multiplicam crenças sem fundamento ou até mesmo completamente falsas (pág. 570).
O estudo relaciona essa mentalidade à pressão cada vez maior no meio acadêmico por publicações, associada à também crescente tolerância à preguiça na verificação de informações e a outras formas de desleixo por parte de autores de artigos científicos (pág. 573).
Crenças
Assim como em outro trabalho publicado neste ano na revista “Social Studies of Science”, Rekdal comenta a famosa lenda acadêmica do espinafre como um dos alimentos mais ricos em ferro. A crença surgiu de um erro de casa decimal em uma transcrição dados de um estudo dos anos 1890, que só foi desmistificada cerca de 40 anos pois por cientistas alemães. A essa altura, o personagem de quadrinhos Popeye, criado em 1929, já tinha ampliado ainda mais a popularização essa crença.
Nesse artigo, o autor deu poucos exemplos de crenças infundadas no meio científico. Mas na semana passada, em entrevista à revista “Science Nordic”, ele lembrou que contestadores do aquecimento global propagaram a partir de 2005 a crença de que as geleiras do planeta estariam crescendo, e não diminuindo. Essa crença tem sido refutada desde então por diversos estudos, e neste ano uma pesquisa concluiu que o derretimento das geleiras já teria atingido um ponto sem retorno.
Crianças de rua
Outra lenda urbana mencionada pelo norueguês diz respeito ao Brasil e assombrou muitos estudos acadêmicos e veículos de imprensa. Foi a estimativa do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) de cerca de 30 milhões de crianças de rua no Brasil, de meados dos anos 1980. Esse dado cuja fonte original não consegui encontrar, provavelmente por ter sido removida, foi objeto de pesquisas sobre confusões de indicadores. Citando dois estudos do antropólogo norte-americano Tobias Hecht, Rekdal afirma:
“A estimativa mais elevada [de crianças de rua no Brasil] da década de 1980 é de 30 milhões, um dado que Hecht compreensivelmente considerou surpreendente, pois o número total de crianças e jovens (de 5 a 19 anos de idade) nas áreas urbanas do Brasil foi de cerca de 29,5 milhões em 1983. (…) Com base na evidência disponível, ele estimou que havia menos de 39 mil crianças de rua no Brasil em 1993 (…).” (págs. 576-577)
Alguns autores, como Lewis Aptekar em seu artigo “Crianças de rua no mundo em desenvolvimento: Uma revisão de sua condição” (1994), destacaram que a elaboração desse dado, assim como a de muitos outros sobre esse mesmo tema, não levou em conta diferenças entre crianças trabalhadoras que vivem em casa e aquelas que trabalham nas ruas mas não vivem com adultos. Mesmo assim, especialistas no assunto jamais deveriam ser indiferentes a esse dado impressionante e obviamente falso. (E não se trata aqui de querer atenuar a grave realidade e a dimensão do abandono de crianças no Brasil).
Obstáculos
Acontece que é muito difícil checar afirmações mal referenciadas. Muitas delas deixam de ser confrontadas porque isso exige dos leitores tempo e atenção muito maiores que o necessário para estudar o que realmente importa. Desse modo, diz Rekdal:
“Estamos falando de um grande rebanho de leitores que têmde passear, da mesma forma, vez após vez, e através de muitoslivros. A publicação acadêmica com base neste tipo de prática é efetivamente uma longa pista de obstáculos.” (pág. 573)
Para evitar esse cenário e, consequentemente, a proliferação de crenças sem fundamento em artigos científicos, seus autores deveriam sempre respeitar a “regra de ouro” de que “citações diretas devem ser sempre seguidas por um número de página”, diz Rekdal. O problema é que, além de não ser devidamente respeitado, esse preceito também tem sido interpretado por meio de uma contrapartida desonesta, segundo a qual conteúdos que não são citações diretas não precisam ser referenciados com número de página (pág. 572).
“O que torna isso infeliz, se não inteiramente absurdo, é que nesses casos é especialmente importante dar ao leitor a oportunidade de voltar à fonte e verificar como o texto original foi resumido, parafraseado ou interpretado.” (pág. 582)
Seja como for, pior do que não verificar alegações mal referenciadas é reproduzi-las. Desastrosa em todos os tipos de atividades, essa prática prejudica na ciência não só os leitores que não fazem parte do rebanho que tudo aceita e são obrigados a percorrer trilhas mal demarcadas, como diz Rekdal (pág. 582). O prejuízo maior é para a própria ciência, que se deixa contaminar pelo espírito do copia-e-cola.

http://mauriciotuffani.blogfolha.uol.com.br/2014/09/15/as-lendas-da-ciencia-e-suas-referencias-fajutas/

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