quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

 

James Baldwin: “Não posso ser pessimista porque estou vivo”

A frase que dá título a este post está presente no documentário “Eu Não Sou Seu Negro”, que trata de um livro inacabado de James Baldwin. Coloquei no título porque resume o que este post especial traz, comentários de dois de seus livros e uma série de indicações que complementam a leitura.

Já havia tentado ler James Baldwin e seu “O Quarto de Giovanni” numa edição da Novo Século, mas não avancei. Isso foi há uns cinco anos. Era um ebook, que ficou esquecido na biblioteca digital.

Então, a Companhia das Letras começou a editar a obra do escritor americano em 2018 e voltei a colocá-lo no radar. Desta vez, entrei por Se a Rua Beale Falasse, romance que virou filme recentemente.

Baldwin, diferentemente de seu título mais conhecido, vai fundo nas chagas que desde sempre dominam os Estados Unidos. Tish e Fonny formam um casal que descobrem que vão ter um filho quando ele é acusado de estuprar uma mulher. Fonny alega inocência, enquanto Tish busca unir as famílias para dar suporte ao noivo.

O racismo aparece de todos os lados, e Baldwin expõe contradições e medos num país que parecia prestes a explodir — como aconteceria anos depois. É um romance curto, de pouco mais de 200 páginas, potente o suficiente não só para ser atual, mas por também captar essências. A música permeia todo o livro, Marvin Gaye, BB King, Billie Holiday, Otis Redding, nomes do soul, blues e jazz amparam o drama dos personagens e dão voz a eles — Beale é uma rua no Memphis fundamental para a história do blues. Hoje, é um ponto turístico.

Na definição de Márcio Macedo, no ótimo posfácio da edição, o romance “pode ser entendido como uma espécie de epopeia afro-americana narrada pela escrita de Baldwin, em que a melancolia e a tristeza da prisão tomam a forma de blues em uma busca incansável pela liberdade e igualdade sustentada pelo amor de Tish e Fonny”.

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Retomei O Quarto de Giovanni, livro ambientado na Paris dos anos 50. David, americano bem de vida, passa uma temporada na capital francesa enquanto espera sua namorada voltar da Espanha. Ela viajara para decidir se aceita o pedido de casamento.

Nas ruas de Paris, David vive a boemia da cidade, quando conhece Giovanni, um garçom italiano. Os dois acabam por se relacionar e passam um tempo no quarto do título. Incerto de suas decisões, David rejeita a relação e abre um debate interno que o leva a questionar suas convicções.

Baldwin escreve com técnica. Alterna leveza com vigor, descreve cenas de sexo com destreza, imprime realismo ao expor os dilemas de David.

Sua obra é, basicamente, uma necessidade nestes tempos sombrios, de intolerância. Nos dois livros, não há defesa nem pregação. Há retratos que iluminam o que vivemos atualmente — e não só no Brasil, mas principalmente.

James Baldwin precisa ser lido. Discutido e disseminado.

Sobre as edições

As edições são bem cuidadas. Paulo Henriques Britto traduz “O Quarto de Giovanni”, que tem introdução de Colm Tóibín e posfácio de Hélio Menezes. “Se a Rua Beale”, traduzido por Jorio Dauster, tem posfácio de Márcio Macedo, que escreve um perfil do autor publicado em ambos os títulos.

De Baldwin, a Companhia das Letras lançou também “Terra Estranha” e prepara “Notes of a Native Son”, volume de ensaios considerado uma obra-prima.

Leituras e outras indicações

On-line 1: O texto é de 2018, mas recupero pois reforça a necessidade de se ler Baldwin. O Nexo entrevistou conhecedores da obra do autor para explicar a importância de seus livros hoje.

On-line 2: O obituário publicado pelo The New York Times apresenta visões sobre a obra do autor, morto em 1987.

Podcast: Vale ouvir o podcast dedicado ao autor. É da Rádio Companhia.

Documentário: “Remember This House” é um livro inacabado de Baldwin, relato sobre a vida de Martin Luther King, Malcolm X e Medgar Evers. O diretor Raoul Peck o transformou no documentário Eu Não Sou Seu Negro, narrado por Samuel L. Jackson. A Vice entrevistou o cineasta. No site Geledés, há uma curta e interessante reflexão sobre o documentário.

Cinema: “Se a Rua Beale Falasse” foi adaptado por Barry Jenkins, diretor do oscarizado “Moonlight”. Consegue captar a atmosfera musical e tensa do livro. É um filme denso, delicado, com diálogos bem captados e uma fotografia belíssima.

Sinapses: São livros que tangenciam “O Quarto de Giovanni” e não guardam mais do que semelhanças. Um deles é “O Sol Também se Levanta”, de Ernest Hemingway, citado no prefácio por Colm Tóibín. O outro é “O Talentoso Ripley”, de Patricia Highsmith.

Trechos

“E não tenho vergonha de Fonny. Tenho mais é orgulho. Ele é um homem. Pelo jeito que aguentou essa merda toda, dá para ver que é um homem de verdade. Às vezes, confesso, fico com medo porque ninguém pode aguentar toda essa merda que jogam sem parar em cima de nós. Mas, então, a gente tem que de algum modo erguer a cabeça para encarar o dia seguinte. Se a pessoa pensa muito para a frente, se até mesmo tenta pensar muito para a frente, nunca vai chegar lá

(Se a Rua Beale Falasse)

“Foi assim que conheci Geovanni. Creio que uma ligação se estabeleceu entre nós no instante em que nos vimos. E permanecemos ligados até agora, apesar da nossa posterior séparation de corps, apear de que em pouco tempo Giovanni estará apodrecendo em terra não consagrada perto de Paris. Até o dia da minha morte haverá momentos assim, momentos que parecerão brotar do chão tal como as bruxas de Macbeth, em que o rosto dele surgirá diante de mim, aquele rosto com todas as mudançås por ele sofridas, momentos em que o timbre exato de sua voz e seus maneirismos de fala explodirão em meus ouvidos até quase perfurá-los, em que seu cheiro vai avassalar minhas narinas.”

(O Quarto de Giovanni)

 James Baldwin: “Não posso ser pessimista porque estou vivo” – capítulo dois (capitulodois.com)

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