Por Vitor Filgueiras e José Dari Krein*, especial para a coluna
O ministro da Economia,Paulo Guedes, defendeu, nesta terça (8),flexibilizar ainda mais a legislação trabalhistapara proteger os vulneráveis "descobertos" pelo governo durante a pandemia. Os números mostram, contudo, que os vulneráveis ainda sofrem com as consequências da "flexibilização" da Reforma Trabalhista de 2017.
Mais de metade dos trabalhadores contratados como intermitentes provavelmente não teve nenhuma renda em dezembro do ano passado, segundo dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais). Isso porque, dos 156 mil empregados ativos ao final de 2019, 85 mil (54,7% de todos os intermitentes) aparecem com salários zerados.
Mesmo admitindo que alguns deles poderiam estar afastados (recebendo benefício previdenciário, por exemplo) ou que haja erros de declaração por parte das empresas, trata-se de um dado chocante e que ajuda a revelar a natureza desse tipo de contrato. Ressalte-se que estamos tratando de um período anterior à pandemia, portanto, isso não pode ser explicado pela situação que vivemos agora.
Na última semana, entrou em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação sobre a constitucionalidade do chamado contrato intermitente (ADI 6154), modalidade aprovada pela Reforma Trabalhista de 2017. Por meio desse contrato, o empregador não garante jornada nem pagamento periódico mínimo ao trabalhador, que é apenas convocado ao serviço a cada demanda específica da empresa.
A votação no STF está 2 a 1 a favor da constitucionalidade do contrato intermitente, tendo sido pedida vista do processo pela ministra Rosa Weber.
Um em cada quatro trabalhadores intermitentes com vínculo ativo em dezembro de 2019 teve salário zerado em todos os meses de vigência do contrato em 2019. Nas demais modalidades de vínculo, esse percentual é muito menor (3,8%). O imenso índice de trabalhadores sem qualquer registro de salário em 2019 é agravado pelo fato de que esse percentual é o dobro do registrado em 2018, quando já era muito mais alto do que a média, alcançando 12%.
Ou seja, como muitos já esperavam, os trabalhadores contratados como intermitentes são frequentemente admitidos e depois deixados de lado pelas empresas, pois estas podem manter o contrato sem passar serviço e sem ter qualquer ônus. Na prática, estamos falando de desempregados que possuem um vínculo formal de emprego.
Propaganda enganosa da Reforma Trabalhista
A mera aparência de emprego do contrato intermitente parece acentuada pelo tempo do vínculo. Dos intermitentes ativos no final de 2019, 38% daqueles com menos de três meses de contrato não tiveram qualquer salário declarado em dezembro, índice que sobe para 55,3% entre três e seis meses, e se aproxima dos 65% entre seis e 12 meses. Cerca de dois a cada três trabalhadores com mais de um ano de vínculo intermitente não tiveram qualquer salário em dezembro de 2019. Quanto mais tempo de contrato, menos essas pessoas trabalham e, portanto, mais são expostas à vulnerabilidade e à ausência de renda.
Se para as empresas o contrato intermitente traz muitas vantagens, particularmente a ampla flexibilidade de gestão da sua força de trabalho, o mesmo não se pode dizer para os trabalhadores, que têm necessidades inflexíveis de sobrevivência, começando por ter que comer todos os dias.
Mesmo aqueles intermitentes que conseguem trabalhar também sofrem sérias dificuldades. Em dezembro de 2019, dos cerca de 70 mil intermitentes que tiveram rendimento, 13,7% obtiveram meio salário ou menos, e 45% receberam no máximo um salário mínimo (média de apenas R$ 752 para quem recebeu entre meio e um salário). Aqueles que provavelmente não receberam nada, somados aos trabalhadores que receberam até meio salário mínimo, são mais de dois a cada três contratos (68%).
No parecer da Câmara dos Deputados para a reforma de 2017, consta que o trabalho intermitente poderia "gerar cerca de 14 milhões de postos de trabalho formais no espaço de dez anos. Somente no setor de comércio, a estimativa é de criação de mais de três milhões de novos empregos". Contudo, o saldo de postos intermitentes em 2018 e 2019 mal alcança 5% da promessa anualizada, configurando mais um caso gritante de propaganda enganosa contra os trabalhadores.
Enquanto isso, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do mesmo período indica que o número de informais continuou crescendo após a Reforma de 2017, inclusive aqueles que poderiam ser contratados formalmente como intermitentes.
Foram admitidos cerca de 150 mil intermitentes entre o final de 2017 e o final de 2019, mas surgiram cerca de 800 mil novas ocupações com jornadas semanais de até 39 horas. Os subocupados também cresceram no período, alcançando 6,8 milhões no final do ano passado. Esses seriam o público típico para a formalização por meio da nova modalidade de contrato, mas praticamente não foram contemplados por esse vínculo.
Os números abarcam tanto empregados quanto trabalhadores que se declaram autônomos (não se sabe quantos sendo vítimas de fraude). Todavia, o conjunto dos subocupados, que já era maciçamente informal antes da Reforma Trabalhista (tomando como parâmetro elementar a contribuição para a Previdência), experimenta crescimento ainda mais intenso da informalidade no período subsequente.
Contrato intermitente precarizou trabalhadores
Portanto, o contrato intermitente não apenas deixou de cumprir suas promessas de mais emprego e formalização, como precarizou brutalmente os vínculos em que está sendo utilizado.
Considerando todos os meses de 2019, 34,7% dos empregados intermitentes ganharam, em média, menos do que meio salário mínimo ou não tiveram remuneração. Somados àqueles que ganharam entre meio e até no máximo um salário mínimo (24,5%, cuja média é de R$ 760 reais, indício de que grande maioria esteve abaixo de um salário), podemos indicar que, em 2019, por volta de dois terços dos intermitentes não puderam se manter como segurados da Previdência com seus salários.
Duas consequências saltam aos olhos: 1) os contratados intermitentes têm imensa dificuldades de conseguir renda para poder sobreviver e são prejudicados em outros direitos trabalhistas (como férias e seguro desemprego); 2) as remunerações miseráveis também impactam negativamente nos direitos previdenciários.
Por meio desta modalidade de contrato dificilmente se preenchem os critérios para ter acesso aos benefícios sociais (a menos que o trabalhador tire do próprio bolso), pois a renda é instável e boa parte das remunerações não atinge o salário mínimo.
Desse modo, admitir como constitucional o contrato intermitente é permitir a legalidade de um vínculo que já submete trabalhadores a condições de grande insegurança e precariedade, e que no futuro terão muitas dificuldades para se aposentar.
Também dramático é o fato de que, apesar de representar um número absoluto reduzido, o contrato intermitente representou mais de 10% do saldo da Rais em 2019.
Ou seja, o contrato não cria e não formaliza postos de trabalho, contudo, pode, quando houver uma retomada da economia, se espalhar e contribuir para desestruturar ainda mais um mercado já muito ruim para os que precisam trabalhar, dada a existência de um estrondoso excedente de força de trabalho - 33,3 milhões de pessoas desocupadas ou subutilizadas em agosto de 2020, que antes da pandemia estava em 25 milhões de pessoas.
Por fim, é importante ressaltar que, mais do que não criar empregos e ao contrário do que pensa o senso comum do liberalismo de playground, o contrato intermitente joga contra sua principal promessa. Salários miseráveis (os intermitentes receberam apenas 35,8% dos salários médios dos outros trabalhadores em 2019) afetam negativamente o consumo, ainda mais com rendimentos instáveis. Ganha-se pouco e não se sabe quando.
(*) Vitor Filgueiras é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e José DariKreiné professor de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Quando Neguine Rezaii se mudou para os Estados Unidos há uma década, ela hesitou em dizer às pessoas que era iraniana. Em vez disso, ela usava o termo “persa”. “Imaginei que as pessoas provavelmente não entenderiam o que isso significava”, diz ela.
A ambiguidade linguística foi útil: ela poderia ao mesmo tempo esconder seu constrangimento com o regime de Mahmoud Ahmadinejad, e continuar sendo fiel a si mesma. “Eles apenas sorriam e iam embora”, diz ela. Atualmente ela está feliz em dizer “iraniana” novamente.
Nem todos optamos por usar a linguagem de forma tão consciente quanto Rezaii – mas as palavras que usamos são importantes. Poetas, detetives e advogados há muito vasculham a linguagem das pessoas em busca de pistas para encontrar seus motivos e verdades interiores. Psiquiatras também: talvez, especialmente os psiquiatras. Afinal, embora a medicina agora tenha uma série de testes e ferramentas técnicas para diagnosticar doenças físicas, a principal ferramenta da psiquiatria é a mesma empregada séculos atrás: a pergunta “Então, como você se sente hoje?” Simples de perguntar, talvez – mas não de responder.
“Na psiquiatria, não temos nem mesmo um estetoscópio”, diz Rezaii, que agora é membro de neuropsiquiatria no Massachusetts General Hospital. “São 45 minutos conversando com um paciente e, em seguida, fazendo um diagnóstico com base nessa conversa. Não existem medidas objetivas. Não existem números”.
Não há nenhum exame de sangue para diagnosticar a depressão, nenhuma tomografia que possa identificar a ansiedade antes que ela aconteça. Os pensamentos suicidas não podem ser diagnosticados por uma biópsia e, mesmo que os psiquiatras estejam profundamente preocupados que a pandemia da Covid-19 tenha graves impactos na saúde mental, eles não têm uma maneira fácil de rastrear isso. Na linguagem da medicina, não existe um único biomarcador confiável que possa ser usado para ajudar a diagnosticar qualquer condição psiquiátrica. A busca por atalhos para encontrar a corrupção do pensamento continua sem resultados – mantendo muito da psiquiatria no passado e bloqueando o caminho para o progresso. Isso torna o diagnóstico um processo lento, difícil e subjetivo e impede os pesquisadores de compreender a verdadeira natureza e as causas do espectro das doenças mentais ou de desenvolver melhores tratamentos.
Mas e se houvesse outras maneiras? E se nós não apenas ouvíssemos as palavras, mas as medíssemos? Isso poderia ajudar os psiquiatras a seguir as pistas verbais que podem nos levar de volta ao nosso estado de espírito?
“Isso é basicamente o que queremos”, diz Rezaii. “Encontrar algumas características comportamentais às quais podemos atribuir alguns números. Sermos capazes de rastreá-las de maneira confiável e usá-las para detecção ou diagnóstico potencial de transtornos mentais”.
Em junho de 2019, Rezaii publicou um artigo sobre uma nova abordagem radical que fazia exatamente isso. Sua pesquisa mostrou que a maneira como falamos e escrevemos pode revelar indícios precoces de psicose e que os computadores podem nos ajudar a detectar esses sinais com uma precisão desconcertante. Ela seguiu as migalhas de pão da linguagem para ver aonde levavam.
Rezaii descobriu que a análise da linguagem podia prever com mais de 90% de precisão quais pacientes tinham probabilidade de desenvolver esquizofrenia antes que quaisquer sintomas típicos surgissem.
Pessoas que têm tendência a ouvir vozes tendem a falar sobre elas. Eles não mencionam essas alucinações auditivas explicitamente, mas usam palavras associadas – “som”, “ouvir”, “cantar”, “alto” – com mais frequência em uma conversa normal. O padrão é tão sutil que você não seria capaz de detectar os sinais mesmo prestando muita atenção. Mas um computador pode identificá-los. E em testes com dezenas de pacientes psiquiátricos, Rezaii descobriu que a análise da linguagem poderia prever quais deles tinham probabilidade de desenvolver esquizofrenia com mais de 90% de precisão, antes que quaisquer sintomas típicos surgissem. Prometia um grande avanço.
No passado, a captura de informações sobre alguém ou a análise das declarações de uma pessoa para fazer um diagnóstico dependiam da habilidade, experiência e opiniões de psiquiatras individuais. Mas, graças à onipresença dos smartphones e das redes sociais, a linguagem das pessoas nunca foi tão fácil de registrar, digitalizar e analisar. E um número crescente de pesquisadores está analisando os dados que produzimos – desde nossa escolha de linguagem ou nossos padrões de sono até a frequência com que ligamos para nossos amigos e o que escrevemos no Twitter e no Facebook – para procurar sinais de depressão, ansiedade, transtorno bipolar e outras síndromes.
Para Rezaii e outros, a capacidade de coletar esses dados e analisá-los é o próximo grande avanço da psiquiatria. Eles chamam isso de “fenotipagem digital”.
Pesando suas palavras
Em 1908, o psiquiatra suíço Eugen Bleuler anunciou o nome de uma doença que ele e seus colegas estavam estudando: esquizofrenia. Ele observou como os sintomas da doença “encontram sua expressão na linguagem”, mas acrescentou: “A anormalidade não está na linguagem em si, mas no que ela tem a dizer”.
Bleuler foi um dos primeiros a se concentrar nos chamados sintomas “negativos” da esquizofrenia, a ausência de algo visto em pessoas saudáveis. São menos perceptíveis do que os chamados sintomas positivos, que indicam a presença de algo a mais, como alucinações. Um dos sintomas negativos mais comuns é alogia ou pobreza da fala. Os pacientes falam menos ou se expressam pouco quando falam, usando frases vagas, repetitivas e estereotipadas. O resultado é o que os psiquiatras chamam de baixa densidade semântica.
Ela é um sinal revelador de que um paciente pode estar em risco de psicose. A esquizofrenia, uma forma comum de psicose, tende a se desenvolver no final da adolescência ao início dos 20 anos para os homens e do final dos 20 anos ao início dos 30 para as mulheres – mas um estágio preliminar com sintomas mais leves geralmente precede a condição completa. Muitas pesquisas são realizadas com pessoas nessa fase “prodrômica”, e psiquiatras como Rezaii estão usando a linguagem e outras medidas comportamentais para tentar identificar quais pacientes prodrômicos desenvolvem esquizofrenia total e por quê. Com base em outros projetos de pesquisa que sugerem, por exemplo, que pessoas com alto risco de psicose tendem a usar menos pronomes possessivos como “meu”, “dele” ou “nosso”, Rezaii e seus colegas queriam ver se um computador poderia detectar uma baixa densidade semântica.
Os pesquisadores usaram gravações de conversas feitas ao longo da última década com dois grupos de pacientes com esquizofrenia na Emory University. Eles dividiram cada frase falada em uma série de ideias centrais para que um computador pudesse medir a densidade semântica. A frase “Bem, acho que tenho fortes sentimentos sobre política” obtém uma pontuação alta, graças às palavras “forte”, “política” e “sentimentos”.
Mas uma frase como “Agora, eu sei como ser legal com as pessoas porque é como não falar, é tipo, você sabe como ser legal com as pessoas, é como se agora eu soubesse como fazer isso” tem uma densidade semântica muito baixa.
Em um segundo teste, eles fizeram o computador contar o número de vezes que cada paciente usou palavras associadas a sons – procurando pistas sobre vozes que eles podem estar ouvindo, mas mantendo isso em segredo. Em ambos os casos, os pesquisadores deram ao computador uma linha de base da fala “normal”, alimentando-o com conversas online postadas por 30.000 usuários do Reddit.
Quando os psiquiatras encontram pessoas na fase prodrômica, eles usam um conjunto padrão de entrevistas e testes cognitivos para prever qual delas desenvolverá psicose. Eles geralmente acertam 80% das vezes. Ao combinar as duas análises de padrões de fala, o computador de Rezaii acertou pelo menos 90%.
Ela diz que ainda há um longo caminho a percorrer antes que a descoberta possa ser usada na clínica para ajudar a prever o que acontecerá com os pacientes. O estudo analisou o discurso de apenas 40 pessoas; o próximo passo seria aumentar o tamanho da amostra. Mas ela já está trabalhando em um software que pode analisar rapidamente as conversas que ela tem com os pacientes. “Você aperta o botão e ele mostra os números. Qual é a densidade semântica da fala do paciente? Quais foram as características sutis sobre as quais o paciente falou, mas não necessariamente expressou de forma explícita?” ela diz. “Seria muito legal se fosse uma maneira de acessar as camadas mais profundas e subconscientes da mente”.
Os resultados também têm uma implicação óbvia: se um computador pode detectar com segurança essas mudanças sutis, por que não monitorar continuamente as pessoas em risco?
Mais do que esquizofrenia
Cerca de uma em cada quatro pessoas em todo o mundo sofrerá de uma síndrome psiquiátrica durante sua vida. Duas em cada quatro agora possuem um smartphone. Usar os dispositivos para capturar e analisar padrões de fala e texto pode funcionar como um sistema de alerta precoce. Isso daria aos médicos tempo para intervir junto às pessoas sob maior risco, talvez para observá-las mais de perto – ou mesmo para tentar terapias para reduzir a chance de um evento psicótico.
Os pacientes também podem usar a tecnologia para monitorar seus próprios sintomas. Pacientes com problemas de saúde mental costumam ser narradores não confiáveis quando se trata de sua saúde – incapazes ou relutantes em identificar seus sintomas. Mesmo o monitoramento digital de medições básicas, como o número de horas de sono que alguém está dormindo, pode ajudar, diz Kit Huckvale, um pós-doutorado que trabalha com saúde digital no Black Dog Institute em Sydney, porque pode alertar os pacientes quando eles podem estar mais vulneráveis a uma queda em suas condições.
Não é apenas esquizofrenia que pode ser detectada com a ajuda de uma máquina. Ao analisar os telefones das pessoas, os psiquiatras foram capazes de captar os sinais sutis que precedem um episódio bipolar.
“Usando esses computadores que todos carregamos conosco, talvez tenhamos acesso a informações sobre mudanças de comportamento, cognição ou experiência que fornecem fortes sinais sobre doenças mentais futuras”, diz ele. “Ou, de fato, apenas os primeiros estágios de angústia”.
E não é apenas esquizofrenia que pode ser detectada com uma máquina. Provavelmente, o uso mais avançado da fenotipagem digital é prever o comportamento de pessoas com transtorno bipolar. Ao analisar os telefones das pessoas, os psiquiatras foram capazes de captar os sinais sutis que precedem um episódio. Quando uma queda de humor está chegando, os sensores GPS em telefones de pacientes bipolares mostram que eles tendem a ser menos ativos. Eles atendem menos as chamadas recebidas, fazem menos chamadas e geralmente passam mais tempo olhando para a tela. Em contraste, antes de uma fase maníaca, eles andam mais, enviam mais mensagens de texto e passam mais tempo falando ao telefone.
Em março de 2017, centenas de pacientes que receberam alta de hospitais psiquiátricos nos arredores de Copenhague começaram a receber telefones personalizados emprestados para que os médicos pudessem checar remotamente suas atividades e verificar se há sinais de mau humor ou mania. Se os pesquisadores detectarem padrões incomuns ou preocupantes, os pacientes são convidados a falar com uma enfermeira. Ao observar e reagir aos primeiros sinais de alerta desta forma, o estudo visa reduzir o número de pacientes que apresentam uma recaída grave.
Esses projetos buscam o consentimento dos participantes e prometem manter os dados confidenciais. Mas, à medida que os detalhes sobre saúde mental são engolidos para o mundo dos grandes volumes de dados, os especialistas levantam questões sobre privacidade.
“A adoção dessa tecnologia está definitivamente ultrapassando a regulamentação legal. Está até ultrapassando o debate público”, diz Piers Gooding, que estuda leis e políticas de saúde mental no Melbourne Social Equity Institute, na Austrália. “É preciso haver um debate público sério sobre o uso de tecnologias digitais no contexto da saúde mental”.
À medida que a tecnologia rastreia e analisa nossos comportamentos e estilos de vida com cada vez mais precisão – às vezes com nosso conhecimento disso e às vezes sem – as oportunidades para outros monitorarem remotamente nosso estado mental estão crescendo rapidamente.
Proteções de privacidade
Em teoria, as leis de privacidade devem evitar que dados de saúde mental sejam repassados. Nos EUA, o estatuto da Lei de Portabilidade e Responsabilidade do Seguro de Saúde (em inglês, HIPAA) de 24 anos regula o compartilhamento de dados médicos, e a lei de proteção de dados da Europa, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR), teoricamente também deveria impedir isso. Mas umrelatório de 2019 de vigilância da Privacy Internationaldescobriu que sites populares sobre depressão na França, Alemanha e Reino Unido compartilhavam dados de usuários com anunciantes, corretores de dados e grandes empresas de tecnologia, enquanto alguns sites que ofereciam testes de depressão vazavam respostas e resultados para terceiros.
Poucos contestariam que isso foi uma invasão de privacidade. Afinal, a informação médica é sagrada. Mesmo quando são feitos diagnósticos de doenças mentais, as leis em todo o mundo devem prevenir a discriminação no local de trabalho e em outros lugares.
Mas alguns especialistas em ética temem que a fenotipagem digital confunda os limites do que poderia ou deveria ser classificado, regulamentado e protegido como dados médicos.
Se as minúcias de nossa vida diária forem peneiradas em busca de pistas para nossa saúde mental, então nosso “escape digital” – dados sobre quais palavras escolhemos, com que rapidez respondemos a textos e ligações, com que frequência deslizamos para a esquerda, quais postagens escolhemos dar like – poderia dizer aos outros tanto sobre nosso estado de espírito quanto o que está em nossos registros médicos confidenciais. E isso é quase impossível esconder.
“A tecnologia nos empurrou para além dos paradigmas tradicionais que deveriam proteger certos tipos de informação”, diz Nicole Martinez-Martin, bioética em Stanford. “Quando todos os dados são potencialmente dados de saúde, então há um monte de perguntas sobre se esse tipo de excepcionalidade de informações de saúde ainda faz sentido”.
As informações de saúde, acrescenta ela, costumavam ser simples de classificar – e, portanto, proteger – porque eram produzidas por profissionais de saúde e mantidas em instituições de saúde, cada uma das quais tinha seus próprios regulamentos para salvaguardar as necessidades e direitos dos seus pacientes. Agora, muitas maneiras de rastrear e monitorar a saúde mental usando sinais de nossas ações diárias estão sendo desenvolvidas por empresas comerciais, que não tem regulamentos ou não são voltadas para a área.
O Facebook, por exemplo,afirma usar algoritmos de Inteligência Artificial para encontrar pessoas em risco de suicídio, examinando a linguagem das postagens e comentários preocupados de amigos e familiares. A empresa diz que alertou as autoridades para ajudar pessoas em pelo menos 3.500 casos. Mas pesquisadores independentes reclamam que ele não revelou como seu sistema funciona ou o que faz com os dados que coleta.
“Embora os esforços de prevenção do suicídio sejam de vital importância, essa não é a resposta”, diz Gooding. “Não há pesquisas sobre a precisão, escala ou eficácia da iniciativa, nem informações sobre o que exatamente a empresa faz com esses dados após cada aparente crise. Está basicamente escondido atrás de uma cortina de leis de sigilo comercial”.
Os problemas não são apenas do setor privado. Embora os pesquisadores que trabalham em universidades e institutos de pesquisa estejam sujeitos a uma rede de permissões para garantir consentimento, privacidade e aprovação ética, algumas práticas acadêmicas podem realmente encorajar e permitir o uso indevido da fenotipagem digital, ressalta Rezaii.
“Quando publiquei meu artigo sobre a previsão da esquizofrenia, os editores queriam que o código fosse abertamente acessível, e eu disse que tudo bem porque estava interessada em coisas liberais e gratuitas. Mas e se alguém usar isso para construir um aplicativo e prognosticar coisas em adolescentes esquisitos? Isso é arriscado,” diz ela. “Os periódicos têm defendido a publicação gratuita dos algoritmos. Ele foi baixado 1.060 vezes até agora. Não sei com que propósito, e isso me incomoda”.
Além das questões de privacidade, alguns temem que a fenotipagem digital seja simplesmente exagerada.
Serife Tekin, que estuda a filosofia da psiquiatria na Universidade do Texas em San Antonio, diz que os psiquiatras têm uma longa história de se atirarem na última tecnologia como forma de tentar fazer seus diagnósticos e tratamentos parecerem mais baseados em evidências. De lobotomias a promessas coloridas de tomografias, a área tende a se mover com enormes ondas de otimismo acrítico que mais tarde se provam infundadas, diz ela – e a fenotipagem digital poderia ser simplesmente o exemplo mais recente.
“A psiquiatria contemporânea está em crise”, diz ela. “Mas é questionável se a solução para a crise na pesquisa em saúde mental é a fenotipagem digital. Quando colocamos todos os nossos ovos na mesma cesta, isso não envolve realmente a complexidade do problema”.
Tornando a saúde mental mais moderna?
Neguine Rezaii sabe que ela e outras pessoas que trabalham com fenotipagem digital às vezes ficam cegas pelo potencial brilhante da tecnologia. “Há coisas em que não pensei porque estamos muito entusiasmados em obter o máximo de dados possível sobre esse sinal oculto na linguagem”, diz ela.
Mas ela também sabe que a psiquiatria confiou por muito tempo em pouco mais do que suposições informadas. “Não queremos fazer inferências questionáveis sobre o que o paciente pode ter dito ou quis dizer se há uma maneira de descobrir objetivamente”, diz ela. “Queremos gravá-los, apertar um botão e obter alguns números. No final da consulta, temos os resultados. Esse é o ideal. É nisso que estamos trabalhando”.
Para Rezaii, é natural que os psiquiatras modernos queiram usar smartphones e outras tecnologias disponíveis. As discussões sobre ética e privacidade são importantes, diz ela, assim como é a consciência de que as empresas de tecnologia já colhem informações sobre nosso comportamento e as usam – sem nosso consentimento – para fins menos nobres, como decidir quem pagará mais por viagens de táxi idênticas ou espere mais para ser pego.
“Vivemos em um mundo digital. As coisas sempre podem ser abusadas”, diz ela. “Uma vez que um algoritmo está disponível, as pessoas podem pegá-lo e usá-lo em outras pessoas. Não há como evitar isso. Pelo menos no mundo médico, pedimos consentimento”.
A frase que dá título a este post está presente no documentário “Eu Não Sou Seu Negro”, que trata de um livro inacabado de James Baldwin. Coloquei no título porque resume o que este post especial traz, comentários de dois de seus livros e uma série de indicações que complementam a leitura.
Já havia tentado ler James Baldwin e seu “O Quarto de Giovanni” numa edição da Novo Século, mas não avancei. Isso foi há uns cinco anos. Era um ebook, que ficou esquecido na biblioteca digital.
Então, a Companhia das Letras começou a editar a obra do escritor americano em 2018 e voltei a colocá-lo no radar. Desta vez, entrei porSe a Rua Beale Falasse, romance que virou filme recentemente.
Baldwin, diferentemente de seu título mais conhecido, vai fundo nas chagas que desde sempre dominam os Estados Unidos. Tish e Fonny formam um casal que descobrem que vão ter um filho quando ele é acusado de estuprar uma mulher. Fonny alega inocência, enquanto Tish busca unir as famílias para dar suporte ao noivo.
O racismo aparece de todos os lados, e Baldwin expõe contradições e medos num país que parecia prestes a explodir — como aconteceria anos depois. É um romance curto, de pouco mais de 200 páginas, potente o suficiente não só para ser atual, mas por também captar essências. A música permeia todo o livro, Marvin Gaye, BB King, Billie Holiday, Otis Redding, nomes do soul, blues e jazz amparam o drama dos personagens e dão voz a eles — Beale é uma rua no Memphis fundamental para a história do blues. Hoje, é umponto turístico.
Na definição de Márcio Macedo, no ótimo posfácio da edição, o romance “pode ser entendido como uma espécie de epopeia afro-americana narrada pela escrita de Baldwin, em que a melancolia e a tristeza da prisão tomam a forma de blues em uma busca incansável pela liberdade e igualdade sustentada pelo amor de Tish e Fonny”.
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RetomeiO Quarto de Giovanni, livro ambientado na Paris dos anos 50. David, americano bem de vida, passa uma temporada na capital francesa enquanto espera sua namorada voltar da Espanha. Ela viajara para decidir se aceita o pedido de casamento.
Nas ruas de Paris, David vive a boemia da cidade, quando conhece Giovanni, um garçom italiano. Os dois acabam por se relacionar e passam um tempo no quarto do título. Incerto de suas decisões, David rejeita a relação e abre um debate interno que o leva a questionar suas convicções.
Baldwin escreve com técnica. Alterna leveza com vigor, descreve cenas de sexo com destreza, imprime realismo ao expor os dilemas de David.
Sua obra é, basicamente, uma necessidade nestes tempos sombrios, de intolerância. Nos dois livros, não há defesa nem pregação. Há retratos que iluminam o que vivemos atualmente — e não só no Brasil, mas principalmente.
James Baldwin precisa ser lido. Discutido e disseminado.
Sobre as edições
As edições são bem cuidadas. Paulo Henriques Britto traduz “O Quarto de Giovanni”, que tem introdução de Colm Tóibín e posfácio de Hélio Menezes. “Se a Rua Beale”, traduzido por Jorio Dauster, tem posfácio de Márcio Macedo, que escreve um perfil do autor publicado em ambos os títulos.
De Baldwin, a Companhia das Letras lançou também “Terra Estranha” e prepara “Notes of a Native Son”, volume de ensaios considerado uma obra-prima.
Leituras e outras indicações
On-line 1: O texto é de 2018, mas recupero pois reforça a necessidade de se ler Baldwin. ONexoentrevistou conhecedores da obra do autor para explicar a importância de seus livros hoje.
On-line 2:O obituário publicado peloThe New York Timesapresenta visões sobre a obra do autor, morto em 1987.
Podcast:Vale ouvir opodcastdedicado ao autor. É da Rádio Companhia.
Documentário:“Remember This House” é um livro inacabado de Baldwin, relato sobre a vida de Martin Luther King, Malcolm X e Medgar Evers. O diretor Raoul Peck o transformou no documentárioEu Não Sou Seu Negro, narrado por Samuel L. Jackson. AViceentrevistou o cineasta. No siteGeledés, há uma curta e interessante reflexão sobre o documentário.
Cinema: “Se a Rua Beale Falasse” foi adaptado por Barry Jenkins, diretor do oscarizado “Moonlight”. Consegue captar a atmosfera musical e tensa do livro. É um filme denso, delicado, com diálogos bem captados e uma fotografia belíssima.
Sinapses:São livros que tangenciam “O Quarto de Giovanni” e não guardam mais do que semelhanças. Um deles é “O Sol Também se Levanta”, de Ernest Hemingway, citado no prefácio por Colm Tóibín. O outro é “O Talentoso Ripley”, de Patricia Highsmith.
Trechos
“E não tenho vergonha de Fonny. Tenho mais é orgulho. Ele é um homem. Pelo jeito que aguentou essa merda toda, dá para ver que é um homem de verdade. Às vezes, confesso, fico com medo porque ninguém pode aguentar toda essa merda que jogam sem parar em cima de nós. Mas, então, a gente tem que de algum modo erguer a cabeça para encarar o dia seguinte. Se a pessoa pensa muito para a frente, se até mesmotentapensar muito para a frente, nunca vai chegar lá“
(Se a Rua Beale Falasse)
“Foi assim que conheci Geovanni. Creio que uma ligação se estabeleceu entre nós no instante em que nos vimos. E permanecemos ligados até agora, apesar da nossa posteriorséparation de corps, apear de que em pouco tempo Giovanni estará apodrecendo em terra não consagrada perto de Paris. Até o dia da minha morte haverá momentos assim, momentos que parecerão brotar do chão tal como as bruxas de Macbeth, em que o rosto dele surgirá diante de mim, aquele rosto com todas as mudançås por ele sofridas, momentos em que o timbre exato de sua voz e seus maneirismos de fala explodirão em meus ouvidos até quase perfurá-los, em que seu cheiro vai avassalar minhas narinas.”