terça-feira, 2 de novembro de 2021

 Maryanne Wolf, neurocientista, é taxativa: aprende-se mais e melhor quando se estuda textos em livros do que em computadores, celulares e tablets. Ou seja: para estudar e bem compreender aquilo que se lê, o papel é mais adequado que a tela.

 

Para estudar, o papel vence a tela

Em um estudo revolucionário, neurocientista norte-americana mostra que o nosso cérebro compreende e memoriza melhor os textos impressos

Crédito: GABRIEL REIS

FALTA DE CONCENTRAÇÃO Enzo Silveira tentou estudar pelos meios tecnológicos e desistiu: memória afetada (Crédito: GABRIEL REIS)

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Em pleno reinado das mais diversas e tecnologicamente avançadas ferramentas digitais, a neurocientista e diretora do Centro de Dislexia da Universidade da Califórnia, Maryanne Wolf, é taxativa: aprende-se mais e melhor quando se estuda textos em livros do que em computadores, celulares e tablets. Ou seja: para estudar e bem compreender aquilo que se lê, o papel é mais adequado que a tela. Maryanne expõe a sua tese na obra “O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era” (Contexto). A pesquisadora assegura que é possível diferenciar dois tipos de absorção da escrita. O primeiro deles, ela chama de “leitura profunda”, e, o segundo, de “leitura superficial”. Ocorrem, respectivamente, quando nos debruçamos sobre um livro para estudar e quando estudamos diante de uma tela.

CATEGÓRICA Beatriz Ambrosio: “com um livro em mãos eu tenho controle do meu aprendizado” (Crédito:GABRIEL REIS)

A leitura profunda conecta uma nova informação ao que já se possui de registros armazenados na memória, a partir de experiências adquiridas. Isso nos ajuda a gostar do texto, ou, como define Maryanne, a desenvolver “empatia” por ele. A leitura profunda também amplia a plasticidade do cérebro, o que vem a ser a capacidade de aprimoramento dos mecanismos de aprendizagem. Na leitura superficial, o conteúdo não é totalmente compreendido pelos mecanismos cerebrais. “No momento em que se lê, a linguagem tem de se conectar com a visão, com os processos racionais e emocionais. E isso não acontece de maneira simples”, diz Maryanne. “Quando se lê por meio de uma tela não se utiliza a parte do cérebro denominada córtex pré-frontal, responsável, entre inúmeras outras funções, pela análise crítica do conteúdo que se está absorvendo”.

Assim como na ciência médica há uma diferença entre o hábito mecânico de ouvir e a dinâmica emocional de escutar, quando estudamos em dispositivos eletrônicos estamos somente olhando. Já no papel, lemos. Esse fenômeno se dá porque aquilo que está escrito em uma tela estimula bem menos o córtex pré-frontal, uma ver que se observa certa acomodação e dispersão na capacidade de se concentrar. O córtex é o grande maestro da orquestra de neurônios e sinapses que compõem a nossa mente, organiza a chegada de novas informações, as conecta com o conhecimento adquirido anteriormente e prioriza aquilo que é mais importante. A visão tem papel primordial em todo esse processo, ela opera como “transportadora” para o cérebro daquilo que está estampado em um computador, celular ou tablet. “Ao fazer uma leitura superficial, o córtex pré-frontal não se conectar com todos esses conhecimentos, sendo ainda mais difícil, inclusive, acessar nossas emoções”, diz Elizeu Coutinho de Macedo, pesquisador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Quando estudamos em dispositivos eletrônicos estamos somente olhando. Já no papel, lemos

Quando se coloca em xeque o contraste entre o estudo em meios digitais e o papel, há uma dúvida que paira: se a leitura em um dispositivo tecnológico for feita de maneira altamente concentrada, ainda assim a compreensão fica prejudicada? Para o neurocientista Macedo, sim. Afinal, no momento em que acessamos esses mecanismos tecnológicos, que muitas vezes nos servem também como entretenimento, é preciso lidar com o chamado controle inibitório: a nossa capacidade de bloquear interferências que podem ser mais atraentes se comparadas a leitura. Há um exemplo definitivo: quantas pessoas você conhece que abrem o computador para ler e acaba passando horas a jogar paciência? Além de jogos, é bem comum que a primeira vontade seja a de ir, por exemplo, direto às redes sociais. O leitor precisa, então, aprender a boicotar esse tipo de tentação. “O livro físico não precisa brigar com esse tipo de desvio de atenção”, explica Macedo.

A leitura superficial não permite o acesso as nossas emoções”
Elizeu Coutinho Macedo, pesquisador (Crédito:GABRIEL REIS)

Enzo Carlini de Silveira tem 13 anos. Está no oitavo ano do ensino fundamental e sempre foi um aluno referência em sua turma no Colégio Pentágono, em São Paulo. Os seus esforços começaram a diluir, no entanto, no momento em que a pandemia forçou a migração das salas de aula para o ensino a distância: “Eu lia cinco parágrafos no computador e de repente não sabia mais o que estava lendo”. Entre os colegas, esse passou a ser o assunto. “Estudar só pela tecnologia estava afetando a minha memória. Precisei voltar ao bom e velho papel”, diz Silveira. O problema não acontece somente com aqueles que ainda não chegaram à fase adulta. Beatriz Ambrosio tem 25 anos e faz mestrado em relações públicas na Faculdade Cásper Líbero. Ela até tentou substituir meios tradicionais de estudo pelo tablet, mas não deu certo: “quando eu estou com um livro em mãos tenho bem maior controle do meu aprendizado”.

 

 https://istoe.com.br/para-estudar-o-papel-vence-a-tela/

 

Especulação Imobiliaria destorce a proteção da qualidade de vida na cidade de são paulo, mistura estação de metrô com incorporações que destroem a cidade.

 Especulação Imobiliaria destorce a proteção da qualidade de vida na cidade de são paulo, mistura estação de metrô com incorporações que destroem a cidade.

Folha de São Paulo - 19/09/21 (Só podia ser a Folha de São Paulo, não é?)

Verticalização e privatizações em SP disparam brigas dos 'não no meu quintal'

Expressão, que vem do inglês, é usada para descrever classe alta que vai contra obras de infraestrutura urbana

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19.set.2021 às 22h45

 

Gustavo Fioratti

SÃO PAULO

As privatizações no governo João Doria (PSDB) e o acelerado processo de verticalização em áreas próximas a metrô e corredores de ônibus de São Paulo têm reaquecido o espírito combativo de moradores e grupos de bairro tachados com um apelido não muito simpático. São os chamados NIMBY, sigla em inglês para “not in my backyard” (“não no meu quintal”).

Diversas publicações de língua inglesa afirmam que o acrônimo surgiu nos anos 1970, em New Hampshire e Michigan, com construções de usinas geradoras de energia nuclear.

Com o passar do tempo, porém, elas foram ganhando uma conotação negativa, contrária a grupos de alta classe que recusavam obras de infraestrutura urbana, mesmo quando os projetos tinham aprovação mais ampla da sociedade.

Divisa entre Paraisópolis e Morumbi é um dos exemplos de nimby. Em 2020, um condomínio de luxo tentou interferir no desenho de um parque entre a região rica e a favela vizinha do Paraisópolis

Divisa entre Paraisópolis e Morumbi é um dos exemplos de NIMBY. Em 2020, um condomínio de luxo tentou interferir no desenho de um parque entre a região rica e a favela vizinha - Gabriel Cabral/Folhapress

Um exemplo notório em São Paulo foi quando moradores do bairro de Higienópolis se opuseram à construção de uma estação de metrô na avenida Angélica.

Em contraponto aos NIMBY, depois surgiram os YIMBY, “yes in my backyard”, ou “sim no meu quintal”, favoráveis aos projetos que contribuíssem com a qualidade da vida urbana, mesmo quando eles fizessem barulho na vizinhança.

Em setembro do ano passado, o advogado Guilherme Pereira, morador do centro da cidade, criou o SPYimby, manifesto que usa redes sociais para falar de conflitos similares na capital paulista.

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Como exemplo de “nimbysmo”, Pereira cita moradores do Morumbi, bairro na zona sul, que tentaram em 2020 interferir no desenho de um parque entre a região rica e a favela vizinha, Paraisópolis. O alvo de críticas eram portões de acessos. Moradores da parte rica pediam a construção de muros e a extinção de entrada que permitisse passagem para as ruas banhadas de condomínios de luxo, muitos deles já murados e assistidos por sistemas de segurança. Não foram atendidos.

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Conheça o nimby, fenômeno reaquecido pela verticalização e privatização de SP

1.           Divisa entre o Paraisópolis e o Morumbi é um dos exemplos mais recentes de nimby. Em 2020, um condomínio de luxo tentou interferir no desenho de um parque entre a região rica e a favela vizinha do Paraisópolis.

 

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Divisa entre o Paraisópolis e o Morumbi é um dos exemplos mais recentes de nimby. Em 2020, um condomínio de luxo tentou interferir no desenh Gabriel Cabral/FolhapressMAIS 

 “Agora, [a oposição] é em relação a empreendimentos residenciais, construídos ou pelo poder público ou pelo setor privado”, diz Pereira, citando a verticalização estimulada pelo Plano Diretor desde 2014.

As demolições se tornaram comuns no trajeto dos paulistanos, com intensidade nas chamadas de Zonas de Estruturação Urbana, que chegam a permitir altura ilimitada para novos edifícios. O skyline está se transformando principalmente às margens das linhas de metrô.

A transformação completa de bairros da zona oeste, que ainda não tinham tantas sombras de arranha-céus, provocou a grita. “Propomos reunir o máximo possível de associações, grupos e coletivos, bem como moradores e comerciantes ‘avulsos’ de Pinheiros, para nos organizar pela preservação do bairro e pela limitação e controle do processo de verticalização”, divulga uma conta do movimento Pró-Pinheiros na internet. Há coletivos organizados também em Perdizes.

“O problema não é verticalizar ou deixar de verticalizar. O problema é a qualidade do que se faz. Nós temos cidades no mundo, como Chicago, com verticalizações imensas e que não perderam a escala humana”, diz Ciro Pirondi, arquiteto que dirige a Fábrica Escola de Humanidades da Escola da Cidade e que é diretor-executivo da Fundação Oscar Niemeyer.

“A verticalização pensada para o adensamento urbano e que pensa o uso da infraestrutura já paga com dinheiro público, a princípio, ela é bem-vinda. Mas só a princípio, pois ela depende da qualidade do que se faz”, diz Pirondi, que considera ainda que a ideia de Plano Diretor Estratégico é um mito da cultura urbana brasileira.

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Encrave de casas resiste à incorporação imobiliária em Pinheiros

1.           As ruas Estela Sezefreda, Dr. Phidias de Barros Monteiro e Pascoal del Gaizo, esta transformada em vila, estão a duas quadras do metrô Fradique Coutinho, em Pinheiros

 

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As ruas Estela Sezefreda, Dr. Phidias de Barros Monteiro e Pascoal del Gaizo, esta transformada em vila, estão a duas quadras do metrô Fradi Eduardo Knapp/FolhapressMAIS 

 “É um instrumento político. Ele não constrói cidades. Se o plano diretor construísse cidades, teríamos as melhores do mundo. E não temos”, diz.

“Cidades que nós amamos no mundo são construídas a partir de projetos urbanos multidisciplinares, não só do arquiteto, mas da economia e por aqueles que usam a cidade. Barcelona, por exemplo, não faz um plano diretor há décadas, e é aquela cidade linda. Nova York, desde 1968 não faz”, alerta ele.

Cria-se uma cadeia de problemas. A falta de qualidade dos projetos arquitetônicos, com consequências para o entorno, é um disparador de insegurança, que dá origem a protestos. E os protestos terminam por barrar projetos de fatos bons. “Normalmente, o morador só sabe que vai haver uma obra quando ela já começou”, reflete Victor Carvalho Pinto, consultor legislativo do Senado Federal na área de Desenvolvimento Urbano e coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.

Pinto conta ainda que se tornou comum a situação em que “delegados” eleitos pelos bairros votam propostas entre vizinhos e que “algumas prefeituras acabam achando que precisam obedecer o que é votado nesse tipo de conferência”.

“Já vi secretários municipais dizendo que cederam a uma postura NIMBY, em bairros de classes altas, porque a conferência votou tal coisa”, narra.

Na capital paulista, por exemplo, a Associação Amigos do Alto de Pinheiros (SAAP) conseguiu pressionar a prefeitura e cercar a praça do Pôr do Sol, cartão-postal da cidade, sem consulta pública e mesmo sob protestos.

Uma das resistências mais antigas e contraditórias na cidade, diz o advogado, é imposta pelos moradores dos chamados bairros-jardins, ou as zonas estritamente residenciais. Alto de Pinheiros está entre esses casos. A vizinhança concentra esforços em manter a atmosfera bucólica e silenciosa.

“Quase tudo o que se propõe de bom para uma cidade, logo aparece um NIMBY para ser do contra. Acabar com uso estritamente residencial, por exemplo: esse modelo não é algo comum em nenhum lugar no mundo”, diz. Sumarezinho, Pacaembu e Jardim Paulistano são outros casos com grandes áreas estritamente residenciais em São Paulo.

Da mesma forma, moradores do Paraíso, também na capital paulista, têm debatido o processo de verticalização do bairro e se uniram para se manifestar sobre o projeto de reforma do ginásio do Ibirapuera proposto pelo governo Doria. São majoritariamente contrários às obras. A argumentação utilizada por eles é a preservação da memória do conjunto e também uma possível sobrecarga no trânsito.

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Ginásio Ibirapuera

1.           Fachada do Ginásio do Ibirapuera, que pode dar lugar a complexo com shoppings e hotel, segundo projeto do governo

 

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Fachada do Ginásio do Ibirapuera, que pode dar lugar a complexo com shoppings e hotel, segundo projeto do governo Adriano Vizoni/FolhapressMAIS 

Em um grupo de WhatsApp com ampla participação de quem mora no Paraíso e também em Cerqueira César, a advogada Célia Marcondes faz uma defesa da participação dos grupos de bairro no controle dos projetos. Ela alerta para a influência do mercado imobiliário na atuação da prefeitura como principal agente nas decisões da expansão das cidades, inclusive no que ela considera que são aprovações de obras que burlam a legislação.

“[O termo NIMBY] vem sendo usado por construtoras e por urbanistas a serviço das mesmas. Cada caso é um caso, e não se pode colocar tudo num cesto só”, diz. “Conheci essa expressão na Inglaterra há alguns anos, mas antes de usá-la tem-se que estudar a legislação. Às vezes a construção contraria a legislação, e o empreendedor dá um jeitinho e tenta macular a luta [de um bairro] com o uso da expressão.”

Ela lidera grupo em Cerqueira César que barrou na Justiça o alvará que permitiria a construção de um prédio de 22 andares na alameda Joaquim Eugênio de Lima.

Erramos: o texto foi alterado

20.set.2021 às 20h56

Versão anterior deste texto afirmava incorretamente que a estação de metrô alvo da reclamação de moradores de Higienópolis estava prevista para ser construída na avenida Consolação. O correto é avenida Angélica. 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/09/verticalizacao-e-privatizacoes-em-sp-disparam-brigas-dos-nao-no-meu-quintal.shtml

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

 

OS PREFÁCIOS DO PEQUENO PRÍNCIPE

POSFÁCIO PARA AS PESSOAS GRANDES

Antoine Jean-Baptiste Marie Roger de Saint-Exupéry, nascido a 29.6.1900, em Lyon, na França, famoso aviador civil, que se distinguiu igualmente como piloto militar durante a II guerra, tornou-se igualmente conhecido no mundo dos livros por grandes obras autobiográficas como Correio do sul (1929), Voo noturno (1931), Terra dos homens (1939), Carta a um refém (1940) e Piloto de guerra (1942).

Mas seu maior feito no mundo literário, que perdura já por três gerações, foi O Pequeno Príncipe, aparentemente uma história para crianças que logo se tornou livro de referência em todo o mundo. Durante décadas, quando se era perguntado sobre que livros se tinha lido, a resposta, indefectível, era: O Pequeno Príncipe! Como, então, uma história aparentemente infantil obteve tal unanimidade? Porque além de ser uma espécie de lenda, um conto mágico, uma distração colorida, enfim o que os franceses chamam de uma féerie, o livro encerra um repositório de exemplos construtivos da personalidade, a análise de amores e paixões, a fidelidade e a solidão, temas sem dúvida adultos, tratados com seriedade e experiência, embora num contexto de narrativa infantil.

Nascido de família nobre, seu pai era conde, Antoine passou a infância em castelos de propriedade da família. Aos 12 anos, fascinado por aviões, ludibriando os instrutores, consegue fazer seu primeiro voo, sem autorização da família, decidindo-se, a partir de então, a seguir a carreira aeronáutica. Estudante medíocre, consegue completar seus estudos secundários em 1917 e tenta se engajar na Marinha, sem sucesso. Amoroso notório, conhece, em 1918, Louise de Vilmorin, que será uma de suas grandes paixões. Mas o enlace não se verifica apesar do longo noivado, e eis que se dá a ruptura em 1923, pois a família da noiva insistia para que Antoine abraçasse uma profissão comercial, ao passo que ele, cada vez mais, se decidia pela aviação. Em 1926, finalmente, ei-lo que realiza seu sonho: ingressa na companhia Latécoère (futura Aéropostale), na qual, em companhia de Mermoz e Guiaumet, faz o transporte de correspondência entre Toulouse e Dacar, a capital do Senegal.

A companhia tem sua filial sul-americana em Buenos Aires e é ali que Antoine vai conhecer sua paixão maior, Consuelo Suncín de Sandoval, nascida em El Salvador, mulher culta, educada na França e na Inglaterra, identificada no livro como a Rosa, criatura sensível, digna de cuidados especiais como uma redoma para protegê-la do sol e um biombo para abrigá-la do vento. O romance-paixão por Consuelo será definitivo, irá durar toda a vida, malgrado as numerosas escapadas extraconjugais de Antoine, mulherengo incorrigível, principalmente para junto de sua Hélène de Vogüe, a “Nelly”, e da princesa Natalie Paley, suas outras duas grandes paixões. Esse aspecto da vida amorosa de Exupéry aparentemente se reflete até mesmo no enredo de O Pequeno Príncipe, com algumas referências mais evidentes como a já mencionada de que a Rosa se refere a Consuelo de Sandoval; de nossa parte, chegamos a imaginar que os três vulcões que existem no planeta do Príncipe bem podem representar Louise de Valmorin (como o extinto) e Hélène de Vogüe e Natalie Paley, como os outros dois, em atividades periódicas. Mas será ao lado de Consuelo que ele viverá seus últimos dias em Nova York, onde iria residir depois de 1944, com a invasão nazista de sua querida França; ela será sua conselheira literária na elaboração de O Pequeno Príncipe.    

Algumas outras referências simbólicas conseguimos vislumbrar nestas páginas inocentes dedicadas às crianças: os conselhos da raposa (que seria provavelmente a consciência amorosa do autor) que. diante de um campo de rosas, faz com que ele se dê conta de que a Rosa, a sua Rosa, é única e insubstituível e – momento culminante – a aceitação da responsabilidade absoluta de quem ama. Já a serpente representa o mal e suas tentações. Será por uma picada de serpente que o Pequeno Príncipe desaparecerá da visão do autor. Donde teria vindo a associação de serpente com a morte? Eis um símbolo que parece ter acompanhado Saint Exupéry por muitos anos. Descobrimos em seu livro Terra dos Homens (de 1939) um trecho em que conta ter feito um pernoite forçado numa pequena cidade do interior da Argentina, onde foi acolhido por um lavrador e suas duas filhas, que o abrigaram e lhe deram uma pequena ceia noturna, durante a qual o aviador percebeu que algo se arrastava pelo chão junto à mesa em que estava. Eis a narrativa: “Fez-se um silêncio – e durante esse silêncio alguma coisa sibilou levemente no assoalho… Ergui os olhos intrigado… mas a mais nova das moças explicou: – “São as víboras”. Aqueles bichos haviam passado entre as minha pernas, junto a meus calcanhares, e eram víboras… –“Elas fizeram ninho num buraco, debaixo da mesa. – Às dez horas elas voltam depois de caçar…” O que para as moças não passava de uma circunstância banal de sua vida campestre transformou-se na mente do autor na indelével imagem da morte iminente.

Saint Exupéry exerce o seu ofício de aviador-postal até 1939 quando, com a guerra, vai servir

numa esquadrilha francesa de reconhecimento aéreo; com o armistício (junho de 1940) deixa a França pelos Estados Unidos, onde se esforça pela adesão desse país à guerra contra Hitler, tornando-se uma das grandes vozes da Resistência francesa. Sempre ansioso pela ação, consegue finalmente em 1944 juntar-se a uma unidade de reconhecimento fotográfico com vistas ao desembarque na Normandia. Foi numa dessas missões, em 31 de julho de 1944, que seu avião é abatido por um caça alemão. O corpo de Exupéry nunca foi encontrado, mas os destroços do aparelho foram formalmente identificados em 3 de setembro de 2003, ao largo de Marselha.  

PREFÁCIO DO DIÓGENES

     A língua portuguesa merecia “O Pequeno Príncipe”, a fábula magistral de Antoine de Saint-Exupéry, com um sutil sabor brasileiro. Não que não tivéssemos traduções bem elaboradas, desde a primeira feita pelo monge beneditino Dom Marco Barbosa, baseada na edição francesa de 1945. Em 2013, ano em que o lançamento do livro comemorou 70 anos, Ferreira Gullar trasladou a edição original de 1943. Encantou-me a feita por Raimundo Gadelha, edição com ilustrações inovadoras. O famoso livro, ilustrado com a aquarela do próprio autor, foi publicado em 1943 no Estados Unidos, simultaneamente em inglês e francês, é um dos mais lidos no mundo, com mais de 250 versões em diferentes línguas e dialetos. 

Câmara Cascudo gostava de repetir, que somente traduzia quando considerava as traduções existentes insuficientes. Assim também deve ter pensado o editor quando teve a feliz ideia de convidar Ivo Barroso para essa edição. Foi certa a iniciativa. É um dos nossos maiores tradutores de prosa e poesia para a língua portuguesa. Ele é responsável por traduções definitivas para o português de William Shakespeare. Somente um tradutor privilegiado seria capaz de semelhante proeza.

De fato, somente um poeta do porte de Ivo Barroso seria capaz de dar um toque definitivo aos brasileiros a esta obra misteriosa e fascinante. Para isso, o tradutor penetrou a concepção estrutural intangível da obra literária, sua forma e conteúdo. Não bastava a erudição, o exercício intelectual, nem ser fortemente experimentado em traduzir, mas é imprescindível a compreensão emocional da criação poética. Como na casa de Deus, a língua tem muitas moradas.  Ivo Barroso é habitante privilegiado do inglês, francês e italiano. Francês é a principal, confessou-me Rimbaud. A sua tradução do clássico de Exupéry é inovadora e animadora, ele mergulha em um olhar infanto-juvenil, revelando novas facetas da obra. O respeito pelo leitor é absoluto. No texto, leveza e densidade caminham de mãos dadas, com tamanha naturalidade que nem nos damos conta de estarmos diante de uma obra vista e revista inúmeras vezes.

“O Pequeno Príncipe” adaptou-se ao Brasil. É amado por crianças de toda idade. A saga do seu autor entrou na alma do povo, no sentimento coletivo. O imaginário popular criou e ampliou histórias, lendas, versões e contraditas. Principalmente em Natal e Florianópolis, onde se diz que ele era muito popular e chamado Zé Perri. Natal era referência obrigatória aos pilotos pioneiros da aviação. Nesta cidade, Jean Mermoz, o amigo mais próximo Saint-Ex, tornou-se ícone vindo da África para este destino e desapareceu no mar. 

Saint-Exupéry menciona Natal no roteiro de volta de Buenos Aires. A cidade é presença obrigatória nos mapas de viagem da Latécoère e de outras companhias. Como na vida do piloto-escritor é envolvida em magia e mistério, até a sua morte, em nosso País não foi diferente. É negado e tem confirmação documental da sua presença aqui. Ele deu entrevista para o Diário de Natal ao jornalista Nilo Pereira, foi fotografado pelo italiano Rocco. A maior parte da população considera o Baobá do Poeta, situado na capital potiguar, a árvore do Pequeno Príncipe. As ilustrações do livro têm coincidências coincidentes com Natal, com os símbolos e ícones da cidade: as dunas, a falésia (a Barreira do Inferno), um vulcão extinto (o cabugi), a estrela cadente da bandeira da urbes, três baobás da espécie folhada (Natal, Macaíba e Nísia Floresta), um mapa do Estado semelha e é estilizado como elefantinho. Por tudo isso, Saint-Exupéry é cultuado como avenida como Mermoz é rua. 

Aventureiro, escritor, piloto, viajante, desenhista e humanista são algumas das facetas de Antoine de Saint-Exupéry. Como os grandes escritores viajantes, de André Gide a Henri Michaux, ele convida o leitor a viajar por sua escrita, traçando observações poéticas e uma experiência interior que se dilata. Ele “mordeu as estrelas”, surgindo no Rio Grande do Norte como um lampejo, um cometa. Sem dúvida, uma visita ilustre.  Ele é símbolo do bem querer da nossa terra.

Acredito que quando o que lemos é atraente e apresenta uma linguagem que favorece a compreensão, a leitura torna-se inevitavelmente prazerosa, o que nos faz ler para dormir e até acordar para ler. Afinal, leitura boa é aquela que se realiza por e com prazer. Por esse motivo, este livro constitui-se em uma viagem mágica, exata, objetiva, sólida, que não se descura quando deve investigar os fantasiosos e calculados engenhos de que se reveste a ficção. Cheio de diálogos que nos emocionam e nos fazem sorrir, aborda temas leves e profundos traduzidos ao português com maestria.

Uma boa leitura.

Diogenes da Cunha Lima

DEDICATÓRIAS DO AUTOR

A LÉON WERTH

              Peço perdão às crianças por ter dedicado este livro a um adulto. Mas tenho uma desculpa séria: esse adulto é o melhor amigo que tenho no mundo. Tenho outra desculpa: esse adulto pode compreender tudo, até os livros para crianças. E tenho uma terceira desculpa: esse adulto mora na França e tem fome e frio. Precisa ser consolado. Se todas essas desculpas não forem suficientes, então quero dedicar este livro à criança que esse adulto foi um dia. Todos os adultos a princípio são crianças. (Mas poucos entre eles se lembram disso.) Corrijo então minha dedicatória:

A LÉON WERTH

QUANDO ERA CRIANÇA


POSFÁCIO DA ILUSTRADORA

Senti uma grande responsabilidade ao criar as imagens para este livro cujas aquarelas de Antoine de Saint-Exupéry, tatuadas em nosso inconsciente fazem parte da infância de muitas gerações. Como desenhar um novo pequeno príncipe no qual eu mesma pudesse acreditar?
A primeira providência foi ler Terra dos homens. Publicado em 1939, o livro narra as memórias de Saint-Exupéry quando foi piloto do correio aéreo francês. Minha suspeita de que O pequeno príncipe, se não fosse ficção, poderia ser um capítulo de Terra dos homens, se confirmou pelo modo particular fascinante e sensível do autor em iluminar por meio de aventuras literárias, o bem e o mal da natureza humana. Na última página do livro, numa viagem de trem o narrador escreve:

“Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher, a criança, bem ou mal, havia se alojado e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia ­nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa da vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele?

Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardinei­ros para os homens.” (tradução de Rubem Braga). 

Fantasiei que o pequeno príncipe de Saint-Exupéry nasce no instante em que a luz da lâmpada ilumina o rosto daquele menino. Ao conceber o perso­nagem, o escritor o protegeu, o educou e o cultivou. Responsável para sempre por tudo o que tenha cativado, Saint-Exupéry escreve a história do pequeno príncipe, publicada em 1943, tornando-se um clássico mundial. 

A ideia de que qualquer um de nós pode ser um pequeno príncipe, um pe­queno Mozart, uma rosa nascida por mutação, muito me intrigou. A potência dentro de nós, que se revela a cada dia, a cada noite dormida, a cada viagem de trem, a cada leitura de um livro, é a própria promessa de uma vida. 

Assisti a documentários para conhecer a infância de Mozart, assim como filmes biográficos do próprio Saint-Exupéry. Esse foi o terreno fértil que pre­parei para criar este pequeno príncipe: um personagem prosaico, que poderia habitar o corpo de qualquer criança. Os pequenos príncipes, os pequenos Mozarts, estão à nossa volta; inclusive pode ser você, caro leitor. 

Incorporei o uso do papel carbono amassado e passado a ferro, técnica que se aproxima esteticamente da gravura. Com um pouco de abstração nas imagens, convido a diferentes leituras, a liberdade para cada um interpretar a seu modo. Na capa, por exemplo, a rosa pode estar numa redoma ou sobre um planeta; na frente de uma pedra ou naquilo que você imaginar. 

Juntos, os pequenos príncipes que vivem em nós e que não abdicam jamais de uma resposta depois de haver feito uma pergunta, criam leituras particulares desta obra repleta de metáforas, que instiga às mais livres reflexões. 

RAQUEL MATSUSHITA

NOTA DO EDITOR

Como o livro ainda não foi lançado, o editor Fariaesilva – rua Oliveira Dias, 330 – 01433-030 – São Paulo informa ser possível adquiri-lo em qualquer plataforma eletrônica (Amazon, Mercado Livre w Estante Virtual) e mesmo nas livrarias mediante solicitando ao livreiro que o encomende para futuro estoque. 

 

https://gavetadoivo.wordpress.com/2021/09/10/os-prefacios-do-pequeno-principe/

Ivo Barroso, tradutor, faleceu em 05/10/2021 aos 91 anos.