A época em que o imperador japonês era mais venerado no Brasil do que no Japão
- 21 outubro 2019
Quando as rádios do Japão começaram a transmitir um discurso do imperador Hirohito em 1º de janeiro de 1946, a derrota do país na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) estava prestes a ganhar uma dimensão espiritual.
"Os laços que nos unem a vós, nossos súditos, não são o resultado da mitologia ou de lendas. Não se baseiam jamais no conceito de que o imperador é deus ou qualquer outra divindade viva", disse o monarca.
A declaração, uma imposição dos vencedores do conflito, marcava o fim do período em que o Estado japonês encarou o culto ao imperador como parte de sua religião oficial. Encerrava-se um ciclo iniciado em 1868, quando o imperador Meiji unificou o Japão e impôs a crença de que sua família descendia de Amaterasu, deusa xintoísta do sol.
Não bastasse terem perdido três milhões de pessoas na guerra, os japoneses subitamente perderam um deus.
O discurso do imperador, porém, não teve o mesmo impacto entre compatriotas que viviam do outro lado do mundo, no Brasil — e que hoje formam a maior população de origem japonesa fora do Japão, com cerca de 1,5 milhão de integrantes.
Com pouco acesso a notícias em japonês e em sua maioria moradores de áreas rurais, muitos imigrantes se recusaram a acreditar que o Japão havia perdido a guerra e continuaram a tratar Hirohito como uma divindade vários anos após o conflito.
Mais do que isso: japoneses que contestassem essa versão podiam ser perseguidos ou mortos por grupos radicais.
Parte da comunidade se lembrará desse período nesta terça-feira (22/3), quando o imperador Naruhito — neto de Hirohito — for entronizado em Tóquio aos olhos de autoridades de vários países, entre os quais o presidente Jair Bolsonaro. E se a cerimônia poderá evocar memórias dolorosas para alguns, ela poderá reavivar sentimentos nacionalistas para outros.
"Entre famílias de imigrantes japoneses no Brasil se nota mais respeito pela figura do imperador do que entre as famílias no Japão hoje", diz à BBC News Brasil Ricardo Mário Gonçalves, professor de Religião e Pensamento Japonês da USP.
Gonçalves diz que, em casas de imigrantes da primeira geração (os chamados "issei"), era comum encontrar fotografias de membros da família imperial. "O tradicionalismo ficou mais vivo aqui, ao passo que o choque da derrota na guerra acabou por eliminá-lo da mentalidade do povo japonês, a não ser em setores ligados à extrema direita nacionalista", afirma o professor.
O monarca japonês hoje não tem poder político, embora exerça uma diplomacia imperial e seja visto como um representante do povo japonês no exterior. Segundo Gonçalves, a maioria dos japoneses vê o imperador como uma figura folclórica, e não religiosa — ainda que o trono siga associado ao xintoísmo.
Todos os anos, por exemplo, o imperador cultiva arroz nos jardins de seu palácio num ritual que busca garantir fertilidade aos solos de todo o Japão. E sacerdotes xintoístas têm papel central nos ritos de entronização.
Deuses e forças sobre-humanas
Considerada a principal religião originária do Japão, o xintoísmo remonta à pré-história do país. Xintô quer dizer "caminho dos kami", termo que costuma ser traduzido como "deuses", mas também pode se referir a poderes ou forças sobre-humanas, como ventos, tempestades, montanhas ou árvores com poder sagrado.
Mortos também podem ser considerados "kami". No passado, conta Gonçalves, muitos políticos ilustres que morriam eram divinizados por seus próprios adversários, que temiam ser amaldiçoados pelos espíritos inimigos.
Hoje o xintoísmo sobrevive no Japão mesclado a outras religiões e práticas. "É difícil falar em seguidores do xintoísmo ou do budismo, porque os japoneses conservam as crenças muito misturadas", diz o professor.
"Tudo que diz respeito à fecundidade, ao nascimento, ao crescimento e à prosperidade é considerado da alçada dos kami, venerados nos santuários xintoístas, enquanto tudo que envolve morte, funeral e homenagens póstumas está na alçada do budismo."
Uma das cerimônias xintoístas ligadas à fertilidade que geram mais curiosidade no Ocidente é o Festival do Falo de Aço, no qual homens vestidos como mulheres carregam esculturas de pênis gigantes pelas ruas de Kawasaki, no primeiro domingo de abril.
Xintoísmo de estado
Embora hoje convivam em relativa harmonia, o xintoísmo e o budismo já travaram embates. Nos séculos 13 e 14, autoridades japonesas começaram a sistematizar doutrinas xintoístas para tentar frear o avanço do budismo, visto como uma influência estrangeira indesejável.
Até que, na Era Meiji (1867-1912), surgiu o "xintoísmo de estado" — uma "construção totalmente artificial promovida por líderes modernizantes que pretendiam criar uma ideologia nacionalista para unir o povo em torno de símbolos que representassem o novo Japão", segundo Gonçalves.
O xintoísmo de estado chegou ao Brasil com os imigrantes japoneses, que começaram a aportar no país em 1908 para trabalhar em fazendas de café e núcleos rurais. Traziam incutido um forte nacionalismo, associado ao culto ao imperador e a um senso de origem comum.
"O Estado japonês não foi transplantado para o Brasil, mas os trabalhadores migrantes japoneses (dekasegi) no Brasil, educados em escolas do início do século 20, mantiveram a religiosidade do xintô imperial mesmo depois da Segunda Guerra Mundial", diz Rafael Shoji, PhD em Ciência da Religião pela Universidade Leibniz de Hannover (Alemanha), em artigo no Japanese Journal of Religious Studies, em 2008.
Essa religiosidade se expressava principalmente por uma veneração difusa de Hirohito, já que, até a década de 1930, os imigrantes só haviam construído dois santuários xintoístas no Brasil: um em Promissão (SP) e outro em Bastos (SP).
Em compensação, templos budistas da comunidade exibiam retratos do imperador e tabuletas com os nomes de seus antecessores — práticas exigidas no Japão pré-guerra que cruzaram os mares. O nacionalismo também era cultivado nas escolas erguidas pelos imigrantes. Lá os jovens aprendiam o "yamato-damashii" — literalmente o "espírito japonês", ou modo de ser do povo.
Brasil declara guerra ao Eixo
Em 1942, porém, o Brasil entrou na Segunda Guerra, e as escolas japonesas foram fechadas. Os imigrantes nipônicos se tornaram alvo de uma série de ações repressivas: tiveram depósitos bancários congelados, seus jornais deixaram de circular e foram até proibidos de falar sua língua em público.
Foi nesse contexto que um grupo de imigrantes fundou o Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos). Liderada por Junji Kikawa, coronel que havia lutado na guerra Russo-Japonesa (1904-1905), a organização buscava reforçar o vínculo entre os imigrantes e o império do Japão, garantindo a transmissão dos valores nipônicos aos descendentes nascidos no Brasil.
O grupo encarava sua presença no Brasil como temporária. A comunidade deveria, portanto, preservar sua coesão e cultura para suavizar a mudança de volta ao Japão ou sua instalação definitiva em colônias japonesas no Pacífico.
No livro Corações Sujos, que trata da história do Shindo Renmei, o escritor Fernando Morais diz que a entidade chegou a ter 100 mil doadores e 60 mil simpatizantes no Brasil. Os números, atribuídos a documentos da polícia, equivalem a metade da comunidade japonesa no país à época.
Entre 1946 e 1947, a organização perseguiu imigrantes que tentavam esclarecer os compatriotas sobre a derrota do Japão na guerra, chamados de "makegumi" (derrotistas). O grupo matou 23 pessoas e feriu cerca de 150 em atentados em São Paulo e no Paraná.
Os integrantes do Shindo Renmei divulgavam que o Japão havia ganhado a guerra, fraudando cartas e documentos que comprovariam essa versão.
'Meio balde de sangue'
Em 2018, a imigrante Aiko Higuchi descreveu à BBC News Brasil o ataque do Shindo Renmei que matou seu pai, Ikuta Mizobe, na época gerente da cooperativa agrícola em Bastos (SP).
"Meu pai tinha saído para dar uma olhada nas orquídeas e fechar o portão, que meu irmão mais novo sempre deixava aberto", disse Aiko. "Então ele foi ao banheiro, atrás da casa. Dois homens estavam escondidos. Quando ele estava fechando a porta, eles atiraram. Minha mãe ouviu os tiros e saiu, e viu dois homens fugindo no cavalo."
"Mamãe falou depois: nunca imaginou que tinha tanto sangue no corpo", diz Aiko, misturando japonês e português. "Ela limpou meio balde de sangue."
Segundo dados citados em "Corações Sujos", 31.380 imigrantes japoneses foram presos por suspeitas de conexão com o Shindo Renmei, e 14 cumpriram pena por homicídio.
Para identificar simpatizantes da organização, policiais costumavam exigir que eles pisassem no retrato do imperador ou na bandeira japonesa. A prática, conhecida entre os japoneses como "fumie", era considerada mais humilhante do que torturas físicas. Quem se recusava a pisar nas figuras se tornava suspeito automaticamente.
Curandeirismo e práticas mágicas
O nacionalismo entre imigrantes japoneses esfriou conforme as novas gerações se tornaram cada vez mais integradas ao Brasil.
Masato Ninomiya, professor de Direito Internacional da USP nascido no Japão, diz à BBC que famílias nipônicas no Brasil hoje veem o imperador como um personagem simbólico, sem qualquer poder espiritual.
Ele diz que alguns templos e organizações xintoístas sobrevivem no país, mas perderam o laço com o monarca e se voltaram principalmente a rituais ligados ao nascimento e envelhecimento.
Há, ainda, grupos formados por japoneses de tendência xintoísta que se dedicam ao curandeirismo e a práticas mágicas, incorporando elementos do universo religioso brasileiro, como o espiritismo e a umbanda.
Ninomiya diz que a sobrevida que o xintoísmo imperial teve no Brasil vários anos após o fim da Segunda Guerra gera curiosidade entre os japoneses.
Ele cita uma emissora de TV japonesa que, em 1972, levou ao Japão uma família de imigrantes nipônicos que vivia no Brasil e ainda acreditava, quase três décadas depois da guerra, que os japoneses haviam vencido o conflito.
"Os jornalistas mostraram cidades que tinham sido bombardeadas e foram reconstruídas, mostraram as ferrovias, as estradas — o Japão moderno que havia surgido no lugar do país arrasado", conta o professor.
"Depois de rodar o país, eles perguntaram à família se ainda acreditavam que o Japão havia vencido a guerra. O pai respondeu que era óbvio que sim, afinal, se o Japão tivesse perdido a guerra, eles não estariam vendo toda aquela prosperidade."
"Ali os jornalistas perceberam que não adiantava insistir, que aquela visão não era racional. Era uma questão de fé, de crença", afirma.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50104588
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