A vocação literária de Frei Betto
Conhecido por sua atuação política contra o
regime militar, o autor de "Batismo de sangue" fala de literatura,
política e critica os desvios de rota do PT
Manuel da Costa Pinto
Prestes a completar 71 anos e com sessenta livros publicados, Frei
Betto descobriu o amor pela escrita muito cedo, quando suas redações
escolares (ou composições, como se dizia à época) fizeram os professores
identificarem seu talento – mas só se tornou um autor “graças aos
generais brasileiros”.
Integrante da Ação Católica, grupo que se opunha ao regime militar,
Carlos Alberto Libânio Christo foi preso duas vezes: em 1964 e no
período 1969-1973, quando estava no Rio Grande do Sul e participava de
uma rede clandestina formada pelos dominicanos para apoiar os
insurgentes.
Dessa segunda experiência, resultaram dois livros de cartas, atualmente reunidas num único volume intitulado
Cartas da prisão.
Começava a se desenhar aí o perfil do religioso e militante que
publicou vários títulos de caráter memorialístico – entre eles,
Batismo de sangue,
que narra os episódios que levaram ao assassinato do ativista Carlos
Marighella e que daria origem ao filme homônimo de Helvécio Ratton.
O cruzamento de atuação política com religião aproximaram Frei Betto
do cristianismo progressista dos dominicanos e da teologia da
libertação, mas jamais sufocaram sua verdadeira vocação – a literatura.
Vocação que foi alimentada pela mãe, Maria Stella Libânio Christo,
cristã progressista e autora de livros sobre culinária (entre eles, o
clássico
Fogão de lenha), e pelo pai, Antônio Carlos Vieira
Christo, advogado, cronista e ferrenho anticlerical, que chorou
copiosamente quando soube que o filho ia ingressar na ordem dos
dominicanos, mas que mais tarde se tornaria “fã da teologia da
libertação, de D. Pedro Casaldáliga”, segundo Frei Betto.
Na entrevista a seguir, concedida no convento dos dominicanos, no bairro paulistano de Perdizes, o autor de
Minas do ouro
fala da preocupação de dissociar a ficção das questões ideológicas –
que continuaram presentes em suas intervenções públicas, levando-o a
participar do programa Fome Zero, durante o governo Lula, mas não o
impedindo de ser um crítico dos desvios de rota do PT e da timidez da
esquerda.
CULT – Quando a literatura e a escrita aparecem na sua vida?
FREI BETTO Comecei a escrever muito cedo. Sempre
conto que, aos oito anos, quando estava no grupo escolar, minha
professora, Dercy Passos, entrou na sala com um maço de composições
(belo nome que se usava então para as redações) e, ao fazer a correção,
deixou a minha por último. No fim, disse à classe: “Vocês deveriam fazer
como Carlos Alberto; ele escreve as próprias composições, não pede para
os pais fazerem por ele”. Aí meu ego bateu lá em cima… E mais tarde, no
primeiro ano de ginásio, no Colégio Marista, meu professor de português
me chamou e disse: “Você só não será escritor se não quiser”. Só que,
para mim, ser escritor era coisa de outro mundo, para gente muito
erudita. Foi daí que me meti no jornalismo. Comecei, em 1966, por onde
muitos almejavam concluir carreira: a revista
Realidade.
Mas só me tornei autor graças aos generais brasileiros, ao escrever
Cartas da prisão
– que foram publicadas primeiramente no exterior [com outros títulos e
em volumes separados], primeiro na Itália, em 1971, em seguida na França
e em outros países. Depois, em 1977, saíram no Brasil.
CULT A experiência política marcou muito sua literatura. Em que momento surge uma ficção “pura”, sem essa preocupação?
FREI BETTO A militância me dificultou muito na
ficção, que é o que mais gosto de fazer. Tive de lutar para me desfazer
dessa camisa de força. Meu primeiro romance foi
O dia de Ângelo, onde ainda havia essa camisa de força, tinha um pouco das minhas experiências em celas solitárias. Depois vieram
Hotel Brasil e
Minas do ouro – em que me soltei mais.
CULT Essa mudança coincide com o período
posterior à queda do muro de Berlim, quando as grandes questões
ideológicas declinam. É só depois disso, por exemplo, que você escreve Hotel Brasil, um romance policial. Há alguma relação?
FREI BETTO Até onde consigo enxergar
conscientemente, queria enfrentar o desafio de fazer um policial – duplo
desafio de criar a ficção e o mistério, conduzir o leitor até o fim sem
que ele descubra quem é o assassino. Foi isso que passou na minha
cabeça. Não tive a consciência de que, com a crise das ideologias, iria
fazer literatura “pura”.
Reservo 120 dias do ano só para escrever. Não são dias seguidos, mas
são sagrados. E muitas vezes estou fazendo ficção e fico árido; daí,
inevitavelmente, leio Machado de Assis. Ele me reaquece, provoca minha
inventividade. Fui um leitor voraz de Jorge Amado e Erico Verissimo, de
quem era amigo e que me ajudou a montar uma biblioteca na penitenciária
em que estive preso – e fui muito marcado pela literatura francesa,
Camus, o Sartre do teatro e de
A náusea.
CULT Falando em Jorge Amado e Sartre, que eram escritores muito engajados, como você avalia a esquerda de hoje?
FREI BETTO A esquerda hoje é uma raridade. Conheci
muito intimamente o mundo socialista, na Nicarágua, depois em Cuba, onde
durante dez anos, entre 1981 e 1991, fiz um trabalho institucional de
reaproximação entre Igreja e Estado. Com a queda do muro de Berlim, a
esquerda acadêmica, que nunca teve um trabalho popular, foi cooptada
pelo neoliberalismo, a ponto de hoje acontecer uma enorme crise
econômica na Europa Ocidental e não haver qualquer proposta de esquerda.
O principal problema filosófico hoje é a desistoricização do tempo.
Isso se reflete na esquerda mundial, que está perdendo o horizonte
histórico (não tem utopia, não tem projeto), e também no plano pessoal –
a dificuldade de se ter projeto pessoal na vida profissional,
artística, afetiva (todos ficam vulneráveis a qualquer dificuldade na
relação conjugal).
Isso está nos levando à falta de esperança, e faz com que a discussão
política desça do racional ao emocional. Sempre participei de
discussões políticas e nunca vi nível de animosidade tão forte como
agora, porque se apagou o horizonte histórico.
Não é fácil ser de esquerda em um mundo tão sedutor quanto o do
capitalismo neoliberal. Daí o problema do PT, que foi perdendo o
horizonte histórico de um projeto Brasil e trocando-o pelo horizonte
imediato de um projeto de poder.
Frei
Betto, em frente ao Palácio do Planalto: “Não há caldo de cultura para
impeachment ou golpe militar” Créditos: Foto José Cruz/ Agência Brasil
CULT Quando percebeu que o PT abandonou seu projeto inicial?
FREI BETTO Isso desaparece na campanha de 2002,
quando o PT faz a opção de assegurar a governabilidade pelo mercado e
pelo Congresso – daí as alianças e a “Carta aos Brasileiros”, que na
verdade é a “carta aos banqueiros”. Ali, o PT abandona sua
matéria-prima, que são os movimentos sociais pelos quais deveria ter
assegurado a governabilidade, como fez Evo Morales na Bolívia, que não
tinha apoio no congresso, se apoiou nos movimentos sociais e, através
deles, conseguiu mudar o perfil do congresso. Hoje, ele tem apoio dos
dois, é o presidente mais consolidado de toda essa safra progressista. O
PT optou pelo mercado e pelo Congresso. Agora, está refém dos dois e
pagando um preço muito alto. Tanto que chamou um homem do mercado para
ver se melhora a economia e entregou a parte política para o PMDB.
CULT Se você já havia se decepcionado desde a “Carta aos Brasileiros”, por que participou do programa Fome Zero, do governo Lula?
FREI BETTO Achei que a “Carta aos Brasileiros” fosse
uma coisa tática, que, uma vez eleito, o PT faria reformas estruturais,
tributária, agrária, algum tipo de reforma. Estava altamente
entusiasmado. Sempre fui convidado para trabalhar em administração, mas
nunca quis trabalhar nem para a iniciativa privada nem para governos.
Gosto dessa vida cigana, solta. Quando Lula foi eleito e me convidou
para o Fome Zero, achei que trabalhar com os mais pobres entre os pobres
– os famintos – se enquadrava em minha perspectiva pastoral e tive todo
apoio de meus superiores dominicanos e até de Roma.
Fiquei dois anos e, de repente, o governo matou o Fome Zero para
substituí-lo pelo Bolsa Família. Tive então a certeza de que essa opção
contrariava a tudo aquilo que o PT vinha pregando desde a fundação. O
Fome Zero era um programa emancipador, o Bolsa Família é compensatório. O
Fome Zero ia mexer na estrutura do país e por isso foi boicotado pelos
prefeitos. Era coordenado por comitês gestores municipais, não passava
pelos prefeitos, não havia como usar os recursos para fazer jogo
eleitoreiro, então os prefeitos se rebelaram, pressionaram a Casa Civil,
que pressionou Lula. No fim, Lula cedeu e eu caí fora.
CULT Você chegou a escrever que o PT faz “populismo cosmético”.
FREI BETTO O erro do Lula foi ter facilitado o
acesso do povo a bens pessoais, e não a bens sociais – o contrário do
que fez a Europa no começo do século 20, que primeiro deu acesso a
educação, moradia, transporte e saúde, para então as pessoas chegarem
aos bens pessoais. Aqui, não. Você vai a uma favela e as pessoas têm TV a
cores, fogão, geladeira, microondas (graças à desoneração da linha
branca), celular, computador e até um carrinho no pé do morro, mas estão
morando na favela, não têm saneamento, educação de qualidade. É um
governo que fez a inclusão econômica na base do consumismo e não fez
inclusão política. As pessoas estavam consumindo, o dinheiro rolando e a
inflação sob controle, mas não se criou sustentabilidade para isso.
Agora a farra acabou, está na hora de pagar a conta e chama-se o Joaquim
Levy [ministro da Fazenda].
CULT Os católicos de esquerda foram preteridos pelo PT por conta dos compromissos com os evangélicos?
FREI BETTO Lula sempre reconheceu que as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) tiveram mais importância na capilaridade do PT
pelo território brasileiro do que o sindicalismo. Nos anos 80, havia
núcleos do PT no fundo do Maranhão ou do Amazonas graças a essas
comunidades. Enquanto foram atuantes, não havia evasão de fiéis para as
igrejas pentecostais. Foi o fato de o Pontificado de João Paulo 2º
reprimir as CEBs que fez com que os bispos já não as patrocinassem e que
muitas pessoas bandeassem para as igrejas evangélicas.
Nas CEBs, o pobre se sente à vontade. Mas numa igreja, não. Você vai à
paróquia e só tem classe média, tem a patroa, tudo é centrado no padre –
não há convivência como numa comunidade. Ainda existem as CEBs, mas não
com aquela força de antes.
As CEBs produziram muitos militantes, como Erundina, Vicentinho,
Chico Alencar. As figuras éticas [do PT] têm uma tradição de igreja. O
PT é formado por três segmentos: o pessoal da Igreja, o do sindicalismo e
o da esquerda – remanescentes da esquerda da época da ditadura (Zé
Dirceu, Paulo Vannuchi etc.). O pessoal das CEBs, por formação pessoal,
nunca teve muita gana de poder. Aos poucos, ficaram em segundo plano.
Por outro lado, os evangélicos estão armando uma grande estratégia de
domínio da política brasileira, que se resume ao seguinte: “Nossos
princípios religiosos exigem determinadas atitudes morais e nós só
podemos impor isso de duas maneiras: convertendo toda a nação (o que é
impossível) ou tendo o poder de fazer a lei civil obrigar as pessoas a
agirem como nós queremos (já que a lei é universal)”. Se você tem a
caneta, você transforma seu princípio religioso em lei.
Frei
Fernando, Frei Betto, Frei Ivo e Frei Tito (da esquerda para a
direita), durante julgamento dos dominicanos em 1971 Créditos:
Divulgação
CULT Você vê sinceridade religiosa nessas posturas ou é manipulação de sentimentos reativos dos fiéis?
FREI BETTO As duas coisas. Há os fundamentalistas e
há os que são meramente oportunistas. Estes perceberam que aquilo é um
manancial de votos. O pastor diz claramente: “o candidato é esse”. Isso
não acontece na Igreja Católica – aconteceu lá nos anos 30, com a LEC
(Liga Eleitoral Católica), em que o bispo dizia “isso sim, isso não”.
Nas igrejas evangélicas, há hoje um direcionamento muito explícito.
Muitos políticos estão ali por fundamentalismo, muitos por oportunismo.
CULT Qual sua posição sobre a liberação do aborto?
FREI BETTO Defendo o modelo francês. Tudo deve ser
feito pelo Estado para convencer a mulher a não abortar, mas a decisão
final é dela. Esse modelo, em primeiro lugar, fez com que acabasse o
aborto clandestino e, portanto, diminuísse o índice de mortes. Em
segundo lugar, o fato de o médico e o ministro da confissão religiosa da
mulher induzirem-na a não abortar aumentou o índice de mulheres que
foram à procura do aborto, mas decidiram assumir o filho. Eu mesmo tenho
experiência pessoal disso. Já recebi vários adolescentes nessa situação
e sempre disse o seguinte: “Tenha o filho e deixe aqui que eu crio,
pode deixar na porta do convento”. Nunca ninguém trouxe e hoje tenho uma
porção de apadrinhados… Tenho uma posição aberta, acho que aborto em
última instância é um direito da mulher e não pode ser criminalizado de
jeito nenhum.
CULT Mas isso não vai contra os dogmas da Igreja?
FREI BETTO Não é dogma. Se fosse, a Igreja também
teria de ser contra a guerra, não haveria capelão militar e, nos EUA,
seria contra pena de morte. Na verdade, há uma ambiguidade na teologia.
São Tomás de Aquino aceitava o aborto até quarenta dias após a
fecundação, porque ainda não haveria ali, propriamente, uma pessoa – e
ele é a doutrina oficial da Igreja. A discussão teológica não está
fechada. Tanto que escrevi um texto sobre isso em 1988, que circulou na
CNBB, e nunca recebi advertência. Aliás, nesse texto digo que “se homem
parisse, aborto seria um sacramento”…
CULT E em relação ao casamento homossexual?
FREI BETTO O fundamento da relação de qualquer ser
humano é o amor – e, se há amor, há Deus. O tema da sexualidade e da
família está congelado na Igreja Católica desde o século 16. Tentou-se
várias vezes abrir esse tema nos concílios, mas ele foi podado. Acho que
o papa Francisco, muito inteligentemente, está conseguindo quebrar esse
preconceito. Em vez de falar “vamos aceitar o casamento homoafetivo”,
ele fala “esses casais têm filhos, as crianças não têm direito à
catequese?”. Com isso, já abriu o caminho. Ele acaba de receber no
Vaticano um transexual espanhol que foi discriminado pelos bispos e que
agora vai casar. Foi um escândalo na Espanha, tanto que dizem que a
direita de lá reza assim para o papa: “Senhor, iluminai-o ou
eliminai-o”.
CULT Outro tema atual que divide a opinião pública é a redução da maioridade penal. Qual sua posição?
FREI BETTO Criminalizar a juventude é uma maneira
cômoda de se omitir naquilo que deveria ser feito para evitar a
criminalidade juvenil: dar educação. É o caso das UPPs do Rio: a polícia
sobe à favela, mas não sobem escola, teatro, cinema, esporte, música – e
o traficante não quer que seu filho seja bandido, quer que ele seja
doutor. Uma geração já poderia ter sido salva no Rio se os equipamentos
sociais também tivessem subido às favelas.
CULT Como militante e ex-preso político, como vê o clamor pelo impeachment da presidente e pela volta da ditadura?
FREI BETTO Não me preocupam ameaças de impeachment
ou golpe. Não há caldo de cultura. Os militares nem saem de farda na
rua. Militar, no Brasil, antes andava orgulhosamente de farda, até para
arrumar namorada…
O que me preocupa é a despolitização da juventude brasileira. Os
segmentos de esquerda deveriam estar preocupados com a politização, como
houve imensamente nos anos 70 e 80. Não há mais formação de consciência
crítica – e aí o pessoal vai no emocional, no oba-oba da volta dos
militares, sem ter ideia do que foi a ditadura, que pode parecer que foi
tranquila, mas é porque havia uma censura brutal. Estamos voltando a
esse nível de desinformação, a esse horror à política.
Manuel da Costa Pinto é jornalista e crítico literário
Depoimentos sobre Frei Betto
Raduan Nassar, escritor: “No mundo ensandecido que está aí, a voz de Frei Betto é exemplar, atuante como poucas, daí que o respeito tanto”
Ricardo Kotscho, jornalista: “Nosso
Frei Betto, também conhecido como ‘frade voador’, pois está sempre em
trânsito, tem um segredo que pouca gente conhece. Vocês sabem como ele
consegue escrever tantos livros e artigos, dono de uma obra tão
prolífica que parece impossível ser escrita por um homem só? Contam as
muitas lendas sobre a figura que ele tem uma equipe de fradinhos
aposentados que passam dia e noite no porão do convento escrevendo para
ele. Betto só dá o tema, pão e vinho à vontade, e depois assina…
Gostaria de saber onde ele arruma tempo para fazer tanta coisa ao mesmo
tempo, sem nunca deixar na mão um amigo ou qualquer pessoa necessitada
de ajuda. Não só tempo, diga-se, mas também paciência para ouvir as
dúvidas e os queixumes de tanta gente que muitas vezes ele nem conhece.
Para entender melhor esse personagem, recomendo a leitura do livro Essa
escola chamada vida, com depoimentos que Betto e Paulo Freire me deram,
muitos anos atrás, sobre as suas trajetórias quando eles eram jovens. Só
mesmo a escola da vida pode explicar os mistérios desse ser humano
especial, de quem tenho muito orgulho de ser amigo e com quem já
compartilhei muitas alegrias e tristezas nessa longa jornada de sonhos
pelas estradas do mundo. Valeu, Betto, e sempre valerá a pena tentar
outra vez”.
Luiz Ruffato, escritor: “Com
relação a Frei Betto, meu privilégio é triplo: sou seu leitor desde os
tempos de estudante; sou seu vizinho há uma década; e, embora à
distância, ouso dizer que somos amigos. Não de nos encontrarmos todos os
dias, que seus compromissos são muitos e constantes, mas de comungarmos
ideias próximas, que incluem lutar por um mundo melhor, por mais que
essa frase ou esse sentimento soe, nesses dias de egoísmo extremo, como
um clichê. Frei Betto é daqueles homens imprescindíveis, de que nos fala
Brecht: sua trajetória pessoal se confunde com a história política
recente do país, desde os tempos de seminarista, quando esteve
encarcerado por sua luta contra a ditadura militar. Intelectual
orgânico, Frei Betto é um dos grandes nomes da literatura brasileira
contemporânea. Sua extensa obra, que inclui dezenas de títulos dos mais
diversos gêneros, tem como ponto fulcral oferecer uma reflexão sobre a
passagem da humanidade pela Terra. Algo como: qual é, afinal, o sentido
da vida? Tivéssemos mais pessoas como Frei Betto e a resposta seria
fácil: a busca da felicidade”.
Adelia Bezerra de Meneses, professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP: “Da
caudalosa bibliografia de Frei Betto, escolho um título: Batismo de
sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Prêmio Jabuti de
1982, esse é um livro doloroso e fundamental. Nele, amalgamando o
jornalista, o historiador, o memorialista e o analista político – todos
sob o signo da Palavra que liberta – Frei Betto, em meio a um recorte da
história do Brasil dos Anos de Chumbo, traça o percurso de Carlos
Marighella e de Frei Tito de Alencar Lima, ambos assassinados pela
repressão. Mas ele próprio, protagonista da resistência à Ditadura
Militar, não entra como mero narardor. É também personagem daquilo que
era um ‘tempo de homens partidos’ (a expressão é de Drummond,
referindo-se a outra Ditadura, a getulista). E Frei Betto narra a saga
de Tito, com quem dividiu a prisão, até esse seu confrade dominicano ser
levado à ‘sucursal do inferno’ da OBAN. Com objetividade e pungência,
constrói um testemunho emocionado que permanecerá – memória resgatada de
algo que nunca poderá ser esquecido. Imantado pela utopia, Frei Betto
parece ter assumido diante de seus companheiros presos e assassinados,
diante de seu irmão Tito destroçado pela tortura, o compromisso de
transmitir às gerações atuais e futuras essa memória compartilhada. Pois
lembrar é resistir”.
Ignário de Loyola Brandão, escritor: “Por
anos, sempre vi Frei Betto chegar a uma cidade levando seu pacote com
seus livros. Leva livros, não importa para onde. Está certo, assim como
deve ser, neste Brasil onde existem poucas livrarias e a maioria é
deficiente. Levar os livros é sinal de humildade e amor aos nossos
escritos. É conhecer o país em que vivemos. Essa foi uma das muitas
lições que esse amigo me ensinou. Certa vez, ele, numa dedicatória de
duas linhas, definiu amizade, relação, troca. No romance Entre todos os
homens, escreveu: ‘Loyola, saudades da amizade que te tenho e dos
encontros e papos que ainda não tivemos’. Ao assinar, acrescentou um
neologismo maravilhoso: Fraternura. Está tudo dito. Uma vez, ao saber
que talvez estivéssemos na mesma mesa, capitulei. Conhecendo a sua fala,
sabia que seria engolido. Não teria o que dizer. No entanto, mais do
que medo, bateu em mim o raciocínio: se fico na mesa, preciso ficar
pensando no que vou falar e perco a fala dele, envolvente, carinhosa,
dura, áspera. Jamais esqueço um dia nos anos 70 em que ele foi almoçar
em minha casa. Tinha saído da prisão. Eu, que imaginava um homem
revoltado contra tudo e todos, dei com um sujeito sereno, que
compreendia o porquê e o como das coisas. Eu, ansioso, perguntei sobre o
medo. Como não ser derrotado por ele? Na prisão, eu morreria antes que
me matassem. Ele me disse: ‘Basta medir o quanto de medo é provocado por
sua imaginação. Se conseguir abstrair, a fantasia viverá. O medo
ampliado pela imaginação te liquida'”.
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/05/a-vocacao-literaria-de-frei-betto/