“Não temos mais debate nenhum”
Publicado em 09/11/2013 | Paulo Camargo
Em julho passado, o jornalista William Waack, editor-chefe e
âncora do Jornal da Globo, foi várias vezes interrompido por vaias e
protestos durante uma mesa que ele tentava mediar na Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip). O tema eram as manifestações de junho, e
o fato de Waack representar, indiretamente, um grande grupo de
comunicação, fez dele alvo de hostilidade por parte do público
presente. No fim de outubro, cerca de 30 estudantes interromperam
duas mesas na Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), na
Bahia. O protesto pedia o cancelamento de debates com o sociólogo
Demétrio Magnoli e o filósofo Luiz Felipe Pondé, colunistas da Folha
de S. Paulo. Também no mês passado, o 1.º Fórum de Filosofia e Ciência
das Origens, que aconteceria na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) foi cancelado na véspera, a pedido de professores da
própria instituição. O motivo: os convidados eram nomes ligados ao
“criacionismo científico”, que nega a Teoria da Evolução de Charles
Darwin. Nesta semana, o Caderno G Ideias discute essa crescente
indisposição para o diálogo e o debate, em favor de posicionamentos mais
radicais, que preferem calar o opositor a ouvi-lo.
Marco Antônio Villa, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP) diz que a intolerância intelectual no Brasil vem se acentuando desde as manifestações do último mês de junho e tendem a se acirrar em 2014, ano de eleição presidencial. Para ele, essa intransigência é decorrência, sobretudo, da inexistência de um debate político consistente no país. “O brasileiro não gosta de política, que a considera um assunto chato, que não o encanta. Não há aqui uma sociedade politizada. O nível de consciência é muito pobre.”
Confira a entrevista completa
A cada legislação, diz Villa, se elegem políticos mais
desprovidos de boas ideias, inconsistentes. Os partidos se diluíram,
perderam a ideologia, e agem em benefício de seus próprios interesses,
enquanto os sindicatos, que já tiveram um papel importante na vida
brasileira, se tornaram braços do Estado, desde a eleição do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003.
A visão do historiador da vida acadêmica brasileira é ainda mais nefasta. “Há um acirramento no meio acadêmico, porque a ‘intelectualidade chapa-branca’ tem medo de perder o que conquistou nos últimos 12 anos.”
Para Villa, o debate intelectual arrefeceu no Brasil a partir da redemocratização, em meados dos anos 80, e segue quase inerte até hoje, nestas primeiras décadas do século 21. “Não temos mais debate nenhum. A universidade pública inexiste. Perdeu-se a capacidade crítica e forma-se muito mal. Há teses de doutorado ilegíveis, a produção científica nas áreas das Ciências Humanas hoje é pífia e inconsistente.”
O mais grave, na visão do historiador, é que já não há mais nas universidades espaço para o contraditório. “É impossível estabelecer um diálogo inteligente de ideias. O controle está nas mãos de grupelhos e não se consegue trabalhar com as diferenças.”
Villa ressalta, contudo, que essa indisposição ao diálogo não é algo novo. Pelo contrário. “Sempre houve uma tradição autoritária no Brasil, uma enorme dificuldade em conviver com o outro, que se tiver ideias contrárias, ‘não representa nada’.”
Embates
O historiador ressalta que já houve, no passado, um debate político intenso no país em alguns momentos. Lembra que, no fim do século 19, o jornalista e escritor Euclides da Cunha defendeu fervorosamente na imprensa o fim da monarquia e o ideário republicano, enquanto que, nos anos 1920, a Primeira República sofreu forte questionamento na imprensa, até a Revolução de 30, que levou ao poder Getúlio Vargas e, por consequência, seu regime ditatorial. Nos anos 50, o debate em torno do entreguismo e do nacionalismo, materializado na campanha pela nacionalização do petróleo, foi outra discussão que ganhou âmbito nacional por meio da imprensa, assim como a implantação das comunidades de base, nos anos 60, durante o governo de João Goulart, um dos pivôs do Golpe de 1964.
Entre as discussões intelectuais públicas brasileiras, Villa cita o embate virulento entre os críticos José Verissimo e Silvio Romero, autores de histórias da literatura brasileira contrapostas, e que trocaram farpas em público no fim do século 19. Outro confronto histórico ocorreu entre o escritor José de Alencar, autor de O Guarani, e o jurista e diplomata Joaquim Nabuco nas páginas do jornal O Globo , em 1875.
Villa defende a ideia de que, no plano político, a redemocratização do país teria, em certa medida, fracassado, já que a população não se tornou muito mais politizada e disposta a debater os problemas nacionais. “Algum êxito, talvez, tenha sido alcançado no plano econômico.” O historiador completa, afirmando que hoje o clima de animosidade é tão forte, que forças opositoras não conseguem mais sequer sentar à mesma mesa para discutir.
Na ditadura do eu
O recrudescimento da intolerância está relacionado ao esvaziamento e à perda das utopias a partir da década de 1960, processo que teria culminado nos anos 90, quando o paradigma liberal de uma sociedade regida por fatores econômicos e mercantilista se impuseram, passando a ter papel central em boa parte do mundo, reforçando um modo de pensamento individualista. “Valores como o respeito à diversidade, o humanismo e a luta pela desigualdade, pregados pelo socialismo, foram se perdendo, em nome do individualismo extremado”, disse à reportagem da Gazeta do Povo César Bueno de Lima, sociólogo, professor do curso de Ciências Sociais da PUCPR e integrante do Núcleo de Direitos Humanos da instituição.
Os meios de comunicação de massa, segundo ele, incluindo agora as próprias redes sociais, substituíram a política, que deixou de ser um território para o debate, e passou a ser o meio pelo qual diferentes grupos fazem valer seus interesses de forma muito pragmática.
As causas coletivas que visam ao bem comum, segundo ele, teriam cedido lugar à cultura do eu. Nessa ordem, que vem se consolidando desde então, o público é sinônimo de decadência e o privado é sempre priorizado. A intolerância, dentro das universidades, inclusive, seria a radicalização desse pensamento que não contempla o diálogo como forma de resolução de problemas. Pelo contrário.
A estratégia passou a ser descredenciar o outro, aquele que se opõe ao que eu penso. A ordem hoje seria a da imposição de um ideário que satisfaz o anseio de indivíduos e de seus iguais, nem que para isso seja necessário causar a morte de quem discorda das minhas ideias. Essa “morte” pode ser simbólica, por meio da censura, do impedimento da expressão desse outro, ou literal, em casos mais radicais.
Individualismo
“Vivemos a ditadura do eu, em que o indivíduo está autorizado a fazer tudo em defesa dos seus próprios interesses. Nem que para isso ele tenha de esvaziar o discurso do outro, com o qual está em discordância, e até de calá-lo.”
O intolerante, assinala o professor, é aquele que defende a pena de morte e não defende os direitos humanos, e sim os direitos dos humanos que pensam como ele. “Há uma recusa de entender e absolver, impingindo dor e sofrimento, dentro de um paradigma da vingança.”
Essa postura, diz Bueno de Lima, atinge também o meio acadêmico, que deveria ser um templo do saber, espaço democrático para o debate e o intercâmbio de ideias, mas acaba por reproduzir todos esses vícios, o que se mostra até mais grave, levando-se em consideração sua vocação à universalidade. “Há hoje uma imensa dificuldade em saber ouvir. Poucos se dispõem a se abrir a outras possibilidades, para além daquilo que acreditam e defendem.”
“Atualmente, a educação não necessariamente torna as pessoas melhores. Poucos se perguntam para que se está educando. Há uma ignorância política muito grande, Educa-se, muitas vezes, para o medo”, finaliza o professor.
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=1423851&tit=Nao-temos-mais-debate-nenhum
Marco Antônio Villa, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP) diz que a intolerância intelectual no Brasil vem se acentuando desde as manifestações do último mês de junho e tendem a se acirrar em 2014, ano de eleição presidencial. Para ele, essa intransigência é decorrência, sobretudo, da inexistência de um debate político consistente no país. “O brasileiro não gosta de política, que a considera um assunto chato, que não o encanta. Não há aqui uma sociedade politizada. O nível de consciência é muito pobre.”
“Sempre houve uma tradição autoritária no Brasil, uma
enorme dificuldade em conviver com o outro, que se tiver ideias
contrárias, ‘não representa nada’.”
Marco Antônio Villa, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP).
Marco Antônio Villa, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP).
“O Brasil não tem tradição de dissonância”
Há um clima de ódio instaurado na vida política do Brasil, que vem se agravando ao longo dos últimos anos em decorrência do embate de forças entre o PT e seu principal opositor, o PSDB. A constatação é do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista concedida à Gazeta do PovoConfira a entrevista completa
A visão do historiador da vida acadêmica brasileira é ainda mais nefasta. “Há um acirramento no meio acadêmico, porque a ‘intelectualidade chapa-branca’ tem medo de perder o que conquistou nos últimos 12 anos.”
Para Villa, o debate intelectual arrefeceu no Brasil a partir da redemocratização, em meados dos anos 80, e segue quase inerte até hoje, nestas primeiras décadas do século 21. “Não temos mais debate nenhum. A universidade pública inexiste. Perdeu-se a capacidade crítica e forma-se muito mal. Há teses de doutorado ilegíveis, a produção científica nas áreas das Ciências Humanas hoje é pífia e inconsistente.”
O mais grave, na visão do historiador, é que já não há mais nas universidades espaço para o contraditório. “É impossível estabelecer um diálogo inteligente de ideias. O controle está nas mãos de grupelhos e não se consegue trabalhar com as diferenças.”
Villa ressalta, contudo, que essa indisposição ao diálogo não é algo novo. Pelo contrário. “Sempre houve uma tradição autoritária no Brasil, uma enorme dificuldade em conviver com o outro, que se tiver ideias contrárias, ‘não representa nada’.”
Embates
O historiador ressalta que já houve, no passado, um debate político intenso no país em alguns momentos. Lembra que, no fim do século 19, o jornalista e escritor Euclides da Cunha defendeu fervorosamente na imprensa o fim da monarquia e o ideário republicano, enquanto que, nos anos 1920, a Primeira República sofreu forte questionamento na imprensa, até a Revolução de 30, que levou ao poder Getúlio Vargas e, por consequência, seu regime ditatorial. Nos anos 50, o debate em torno do entreguismo e do nacionalismo, materializado na campanha pela nacionalização do petróleo, foi outra discussão que ganhou âmbito nacional por meio da imprensa, assim como a implantação das comunidades de base, nos anos 60, durante o governo de João Goulart, um dos pivôs do Golpe de 1964.
Entre as discussões intelectuais públicas brasileiras, Villa cita o embate virulento entre os críticos José Verissimo e Silvio Romero, autores de histórias da literatura brasileira contrapostas, e que trocaram farpas em público no fim do século 19. Outro confronto histórico ocorreu entre o escritor José de Alencar, autor de O Guarani, e o jurista e diplomata Joaquim Nabuco nas páginas do jornal O Globo , em 1875.
Villa defende a ideia de que, no plano político, a redemocratização do país teria, em certa medida, fracassado, já que a população não se tornou muito mais politizada e disposta a debater os problemas nacionais. “Algum êxito, talvez, tenha sido alcançado no plano econômico.” O historiador completa, afirmando que hoje o clima de animosidade é tão forte, que forças opositoras não conseguem mais sequer sentar à mesma mesa para discutir.
Na ditadura do eu
O recrudescimento da intolerância está relacionado ao esvaziamento e à perda das utopias a partir da década de 1960, processo que teria culminado nos anos 90, quando o paradigma liberal de uma sociedade regida por fatores econômicos e mercantilista se impuseram, passando a ter papel central em boa parte do mundo, reforçando um modo de pensamento individualista. “Valores como o respeito à diversidade, o humanismo e a luta pela desigualdade, pregados pelo socialismo, foram se perdendo, em nome do individualismo extremado”, disse à reportagem da Gazeta do Povo César Bueno de Lima, sociólogo, professor do curso de Ciências Sociais da PUCPR e integrante do Núcleo de Direitos Humanos da instituição.
Os meios de comunicação de massa, segundo ele, incluindo agora as próprias redes sociais, substituíram a política, que deixou de ser um território para o debate, e passou a ser o meio pelo qual diferentes grupos fazem valer seus interesses de forma muito pragmática.
As causas coletivas que visam ao bem comum, segundo ele, teriam cedido lugar à cultura do eu. Nessa ordem, que vem se consolidando desde então, o público é sinônimo de decadência e o privado é sempre priorizado. A intolerância, dentro das universidades, inclusive, seria a radicalização desse pensamento que não contempla o diálogo como forma de resolução de problemas. Pelo contrário.
A estratégia passou a ser descredenciar o outro, aquele que se opõe ao que eu penso. A ordem hoje seria a da imposição de um ideário que satisfaz o anseio de indivíduos e de seus iguais, nem que para isso seja necessário causar a morte de quem discorda das minhas ideias. Essa “morte” pode ser simbólica, por meio da censura, do impedimento da expressão desse outro, ou literal, em casos mais radicais.
Individualismo
“Vivemos a ditadura do eu, em que o indivíduo está autorizado a fazer tudo em defesa dos seus próprios interesses. Nem que para isso ele tenha de esvaziar o discurso do outro, com o qual está em discordância, e até de calá-lo.”
O intolerante, assinala o professor, é aquele que defende a pena de morte e não defende os direitos humanos, e sim os direitos dos humanos que pensam como ele. “Há uma recusa de entender e absolver, impingindo dor e sofrimento, dentro de um paradigma da vingança.”
Essa postura, diz Bueno de Lima, atinge também o meio acadêmico, que deveria ser um templo do saber, espaço democrático para o debate e o intercâmbio de ideias, mas acaba por reproduzir todos esses vícios, o que se mostra até mais grave, levando-se em consideração sua vocação à universalidade. “Há hoje uma imensa dificuldade em saber ouvir. Poucos se dispõem a se abrir a outras possibilidades, para além daquilo que acreditam e defendem.”
“Atualmente, a educação não necessariamente torna as pessoas melhores. Poucos se perguntam para que se está educando. Há uma ignorância política muito grande, Educa-se, muitas vezes, para o medo”, finaliza o professor.
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=1423851&tit=Nao-temos-mais-debate-nenhum
Nenhum comentário:
Postar um comentário