A primeira vez que ouvi a Marilena Chauí bradar contra a classe
média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que
provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese
quase impulsivamente. Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a
classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma
classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza
seria impossível. Então, o engrossamento da classe média tem sido visto
como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de
equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade
social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base. A classe
média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma
sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria
uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.
Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de
leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese
assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta
razão. Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe
média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O
QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “PORQUE”. Por que logo a
classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o
“atraso de vida” do Brasil, como sempre foi dito? E mais, ela fala da
classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como
categoria social. Então, para ela, a identificação deste fenômeno não
tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim
empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média
paulistana. E por que a classe média brasileira e não a classe média em
geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as
afirmações de dona Marilena.
Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da
classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem
como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano,
comecei lentamente a dar razão à filósofa. A classe média parece mesmo
reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me
perguntava “por que” a classe média, e “por que” a brasileira? Havia um
elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser
desvendado.
Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria
médica – justamente uma categoria profissional com vocação para classe
média - ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta. Aqueles
episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa
pergunta! Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de
forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças
intelectuais e políticas como o nosso? Estudantes de medicina e médicos
parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios
mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros
segmentos profissionais. Isto não pode ser explicado apenas pelo que se
convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias
profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são,
ao menos não da mesma forma. Então deveria haver outra interpretação
para isto.
Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a
argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando
salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era
uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil. Então, este
pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por
que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar
no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um
dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de
estrutura, e que está entre os mais caros do país. É um feito se formar
médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer
outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode
aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos,
desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui.
Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria
médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na
verdade, um brado pela meritocracia.
A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui
colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária
porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua
ideologia conservadora.
Assim, boa parte da classe média é contra as cotas nas universidades,
pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito; é contra
o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito
desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e penas mais duras
porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta
de mérito; reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o
próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz,
muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não
gera impostos. É contra os políticos porque em uma sociedade racional, a
técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões:
então, deveríamos ter bons gestores e não políticos. Tudo uma questão de
mérito.
Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras?
Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no
Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por
aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas
de garantias públicas. O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades,
vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o
estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar. O
mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais
liberais, etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um
empecilho, nunca uma aliada. Mesmo a classe média estatal atual, formada
por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu
sua posição de forma meritocrática. Então, a classe média brasileira se
constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes
empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou
de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para
que possam fazer carreira também por méritos próprios. Acho que isto
forjou o ethos meritocrático da nossa classe média.
Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo. Boa
parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de
bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso
com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários
deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas
anti-meritocráticas. E a classe média americana, bem, esta convive de
forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo
tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito
não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser
meritocrática. Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu
patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de
um sistema público que a suporte; se advém uma crise econômica como a
de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas
casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à
época. Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social
alguma.
As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também
não são meritocráticas. A classe alta é patrimonialista; um filho de
rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo
mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao
contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode
comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa. Além
disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do
Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais;
então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular
apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político.
Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela
falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial
individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu
insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas
para si a responsabilidade pela superação da sua condição. E ela sabe
que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas
de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que
seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida.
Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas.
A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de
poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências
individuais, como inteligência, habilidade e esforço. Supostamente,
portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do
merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais.
Aliás, tenho certeza de que todos nós educamos nossos filhos e
tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós
valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças
para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas,
motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para
buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve
para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é
claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas. Então, uma
coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo
individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo
como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social.
Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de
organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa.
Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões
para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso
de organização social.
a) A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas
diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento,
competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida,
justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade
meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o
acesso de muitos a direitos fundamentais.
b) A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social,
supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como
atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as
responsabilidades por seus sucessos e fracassos.
c) A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção
social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política,
transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da
sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens
coletivas. Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de
ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a
racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a
racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações,
dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma
sociedade democrática e pluralista.
d) A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável
“ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa
sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e
formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também
condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito
distantes. O Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve
desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão
(ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem. O Quintana,
pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem
ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem
amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor
literário, outro tem desempenho de mercado. O José, aquele menino nota
10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem
da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o
será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste
caso). Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre
merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mudo em que
vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham
juntos, e talvez raramente convirjam.
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de
valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o
desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que
está longe de ser. Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais
deveria se chamar “desempenhocracia” - se confunde merecimento com
desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.
e) A meritocracia escamoteia as reais operações de poder. Como
avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a
certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação
como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de
poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário. Assim,
os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no
país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e
científico; bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só
por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing;
grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas,
“promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim
por diante. Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por
trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme
os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das
operações de poder; que por sua vez, são a matéria prima de toda a
atividade política. Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia
repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos,
econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta
“objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia
esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente
organizada e isenta da ingerência política. Nada mais ilusório e nada
mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior
poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si
mesmo, que se oculta para não ser visto.
e) A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade
social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma
de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da
modernidade). A dominação e o poder ganham roupagens racionais,
fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma
aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e
dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.
f) A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos
fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios
aos resultados esperados. Para a meritocracia não vale a pena ser o
Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria
exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale
mais a pena ser o Paulo Coelho, a E.L. James, e fazer uma literatura
calibrada para vender. Da mesma forma, muitos pais acham mais racional
escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e
valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que
ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam
para passar em provas. Cursos de pós-graduação e professores
universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros
para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa
e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e
para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq.
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para
distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade
e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as
decisões e ações humanas. Assim, em uma sociedade meritocrática, a
racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se
ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de
dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
g) Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade
humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do
desempenho. O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas –
pérola da concepção subjetiva e complexa do humano - é uma verdadeira
aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um
ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa
nesta escala depende de processos objetivos de avaliação. A posição e o
valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos,
de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de
uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de
pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante. Embora a natureza
humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam
intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem
para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco
espaço para o próprio ser humano. Desta forma, a meritocracia destrói o
espaço do humano na sociedade.
Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais
reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros
abismos sociais e humanos. Assim, embora eu tenda a concordar com a tese
da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma
troca de alvo. Bradar contra a classe média, além de antipático pode
parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para
escapar ao seu estereótipo. Não se muda a posição política de alguém
atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a
sua ideologia.
Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o
conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o
que é: a meritocracia.