A reportagem é de Ivan Marsiglia e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 21-10-2012.
Tão logo a polêmica se mostrou "ruim para ambas as partes" - para usar o
bordão do candidato derrotado Celso Russomanno -, ninguém quis assumir a
iniciativa de tê-la posto em pauta. A discussão sobre materiais
didáticos de combate à homofobia, os enviesadamente chamados "kits
gays", começou a semana em altos decibéis na boca dos postulantes à
Prefeitura de São Paulo José Serra e Fernando Haddad. Depois minguou
diante da revelação de que ambos os haviam produzido em suas respectivas
gestões à frente do governo do Estado e do Ministério da Educação, até
resultar no silêncio obsequioso sobre o tema verificado quinta-feira,
durante o primeiro debate televisivo do segundo turno das eleições.
Na corrida presidencial de 2010, algo semelhante se verificou no Brasil:
o tema do aborto, sempre controverso, entrou e saiu de cena assim que
marqueteiros detectaram que a troca de acusações nesse terreno mais
afugentava do que atraía eleitores. Ao sumiço pragmático, acrescentou-se
quase um pacto republicano de não tocar mais no assunto.
Também nos EUA os direitos das minorias voltaram ao noticiário essa
semana, depois que uma corte de apelações de Manhattan pediu que fosse
alterada a formulação federal que define o casamento como "união entre
um homem e uma mulher". Os juízes de Nova York consideram-na
discriminatória. Ao mesmo tempo, e em plena campanha eleitoral
americana, o Pew Research Center divulgou pesquisa demonstrando que a
imensa comunidade latina no país, vista tradicionalmente como machista,
resiste cada vez menos ao casamento gay.
Foi dentro desse cenário que o caderno Aliás conversou com a filósofa
americana Judith Butler, professora da Universidade da Califórnia, em
Berkeley, autora da comentada Queer Theory, que sustenta que a
identidade sexual ou de gênero é resultado de uma construção social e
não de papéis biologicamente definidos. Judith falou sobre a intromissão
do tema da homofobia na sucessão paulistana, dos limites à liberdade de
expressão quando ela se traveste do discurso do ódio e dos avanços e
recuos na luta pelos direitos sexuais nos EUA, na Europa e na América
Latina.
Eis a entrevista.
Quão inusitado é uma discussão sobre material didático de combate à homofobia entrar na pauta de eleições municipais?
Depende de que parte do mundo se esteja falando. Vejo isso acontecendo
em algumas cidades americanas, na Rússia, na Turquia e em outros
lugares. O que levanta a questão sobre a necessidade de um compromisso
político que considere efetivamente a homofobia e a transfobia como
formas inaceitáveis de discriminação. Opor-se a políticas de combate ou à
produção de material didático contra a homofobia significa defender a
homofobia. O que me parece um tanto contraditório para qualquer partido
político comprometido com a igualdade e a justiça.
Representantes do movimento LGBT integram ambos os partidos, PT e PSDB,
que disputam o 2º turno da eleição em São Paulo. O que esse ocultamento
da 'agenda gay' revela sobre a democracia de nossos dias?
Não conheço em profundidade a situação no Brasil, mas está claro que
diversos partidos vivem a contradição de ostentar oficialmente políticas
de combate à homofobia, num quadro mais amplo de defesa dos direitos
humanos, mas, ao mesmo tempo, solapá-las na tentativa de manter o apelo a
eleitores religiosos ou conservadores. É uma forma de hipocrisia que
acaba por minar as políticas antidiscriminatórias, fazendo delas mero
jogo de aparências.
Como superar essa hipocrisia eleitoreira?
Se há cristãos que enxergam a homossexualidade como pecado ou algo
antinatural, há também aqueles que enfatizam o fato de que todos são
filhos de Deus, devem ser amados e respeitados. Então, é politicamente
importante que os defensores do secularismo fortaleçam as alianças com
grupos cristãos não homofóbicos para combater abertamente a
estigmatização de minorias sexuais e de gênero.
Uma comunidade religiosa pode pregar contra a homossexualidade entre seus pares em nome da liberdade de expressão?
Em minha opinião, uma comunidade religiosa pode ter as visões mais
tacanhas sobre as mulheres, os gays, as lésbicas, os bissexuais e
transexuais. Mas não pode querer impor suas crenças na forma de
políticas que contradigam princípios básicos dos direitos humanos.
Acreditar é uma coisa; impor discursos e políticas públicas é outra.
Claro que devemos combater esse tipo de crença, apelando inclusive aos
valores do amor e do respeito ao próximo na tradição cristã - e
reforçando os princípios universais que ditam que toda pessoa,
independentemente do gênero ou da orientação sexual, deva ser tratada
com dignidade.
Mas a partir de que momento um julgamento moral deixa de ser uma opinião ou uma crença e torna-se crime a ser punido?
Se uma pessoa emite um julgamento moral contra a homossexualidade, essa
pessoa deve ser simplesmente confrontada com argumentos melhores. Mas,
se ela pretende instalar sua crença na legislação ou desencadeie uma
campanha de ódio e discriminação, entramos em outro território. Se essa
propaganda homofóbica contribui para a instalação de um ambiente
político em que gays, lésbicas, travestis ou transgêneros sintam-se
moralmente depreciados ou fisicamente ameaçados, isso jamais poderá ser
considerado "liberdade de expressão". Na maior parte dos países
europeus, o discurso antissemita é considerado racismo e contra a lei. E
o discurso racista é mais facilmente identificado com a injúria do que o
homofóbico. Eis o problema. Nos EUA, a liberdade de expressão tende a
ser considerada um direito que se sobrepõe a todos os outros e, por isso
mesmo, o último a ser passível de restrição. Então, mulheres, travestis
e transexuais podem ser perturbados nas ruas sem que isso seja
considerado contra a lei, a não ser que fique explícita a intenção de
agredir. E o risco de se tolerar esse tipo de discurso é criar um
ambiente público intoxicado.
A corte de apelações de Manhattan propôs essa semana a alteração do
estatuto que define o casamento como união entre um homem e uma mulher
por considerar essa formulação discriminatória. Acha que a Suprema Corte
vai acatar a proposta?
A Suprema Corte teria o poder de tomar a decisão de alterar a definição
federal de casamento para que essa não estipule o gênero das pessoas que
desejem estabelecer contrato de matrimônio. Mas tenho sérias dúvidas de
que a atual configuração da corte vá acatar essa modificação. Não
porque regras coletivas estariam se sobrepondo a direitos individuais,
mas porque há aqui duas ideias de bem social em competição.
O dado da pesquisa divulgada na quinta-feira de que cresceu a aprovação
ao casamento gay por parte dos cidadãos de origem latina nos EUA a
surpreendeu?
Sim, mas não estou certa do que isso signifique realmente. Teríamos que
analisar a metodologia usada nas entrevistas para avaliar se está mesmo
ocorrendo algo de significativo. Entretanto, faz sentido que um grupo
que sofre clara discriminação nos EUA, como os latinos, desenvolvam
certa sensibilidade em relação a outros grupos alvo de preconceito. E
também é preciso lembrar que há uma significativa população lésbica,
gay, bi ou trans entre os latinos. Mesmo o mais conservador deles está
sujeito a conviver na família com um primo travesti, uma irmã lésbica ou
um filho gay. É algo que faz muita diferença.
Na era Bush, com a ascensão dos chamados neoconservadores, a Casa Branca
pressionou ONGs com trabalhos no campo da sexualidade e dos direitos
reprodutivos, incluindo o aborto, cortando-lhes fundos oficiais. Hoje
esses mesmos temas parecem não galvanizar atenções na campanha
presidencial de Obama e Romney. Por quê?
Muitos esperavam de Obama uma atuação mais forte na área dos direitos
civis - aqui em um sentido um pouco distinto do que estamos chamando de
direitos individuais. Ele até procurou apoiar movimentos antirracismo,
pela equivalência salarial para as mulheres ou rejeitando o boicote
contra gays nas Forças Armadas. Mas o fato é que várias dessas ONGs
atuam de maneira muito próxima dos poderes públicos, a ponto de se
tornar difícil distinguir umas dos outros. Algumas organizações são
críticas, mas a maior parte depende do governo, então há uma
cumplicidade que precisa ser quebrada para essas políticas avançarem.
No início dos anos 1970, em São Francisco, o movimento gay elegeu seu
primeiro político, o ativista Harvey Milk, cuja história virou filme.
Faltam lideranças que assumam a luta LGBT hoje em dia?
De novo, depende de que parte do mundo estamos falando. Em São
Petersburgo, esses grupos se mobilizam simplesmente pelo direito de se
manifestar em público. Nos EUA, as organizações com mais atuação
política estão dedicadas à aprovação do casamento gay. E na África do
Sul lésbicas protestam contra os "estupros corretivos". De modo que fica
difícil fazer qualquer tipo de generalização. Em geral, a agenda gay
consegue se inserir em um retrato maior dependendo do contexto. Às
vezes, a única forma de se atuar no mainstream é subscrevendo legendas
nacionais mais amplas, como na Holanda e na Alemanha, para depois se
detalhar as reivindicações.
A Constituição brasileira de 1988 é tida como uma Carta essencialmente
social, ao passo que a americana dá bastante ênfase aos direitos
individuais. Quanto isso influencia na forma como essas questões são
percebidas pela sociedade?
Tudo depende de como se vê o coletivo. Se os direitos coletivos são
descritos como os que dizem respeito às comunidades e valores
tradicionais, então se abre a brecha para que aqueles não se estendam a
grupos que não compartilhem esses valores tradicionais. Mas, se
entendermos que os direitos coletivos devam ser generalizados a todos,
uma vez que todos têm direito à representação na sociedade democrática,
vamos encontrar um discurso mais afinado: o de que os grupos de gays,
lésbicas, trans, etc. não briguem por direitos individuais, mas por
igualdade e justiça para todos, independentemente da sexualidade ou do
gênero. Aí, é conveniente o olhar universal. Parece claro, como disse,
que a forma como a liberdade de expressão é entendida nos EUA é
diferente do entendimento que há na Europa e na América do Sul. Mas, se
nos EUA ela goza de certa prioridade, isso tampouco significa que não
haja debate sobre seus limites, sobre em que momento o free speech se
torna o discurso do ódio e da injúria.
Essa semana o Uruguai se tornou o segundo país da América do Sul a descriminalizar o aborto. Vê sinais de mudança na região?
É uma boa questão... Mas deixe-me incluir também o caso Karen Atala, no
Chile, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos teve de
intervir em 2010 para condenar o Estado chileno por haver negado a
guarda de suas filhas por causa de sua orientação sexual (assumidamente
lésbica, Atala perdera, por esse motivo, a guarda para o ex-marido).
Então, há sinais ambíguos. Mas creio que apesar das pressões do
populismo, das tradições católicas, das imposições dos mercados sobre a
agenda dos direitos, desconfio que vamos continuar a ver inovações
radicais na América Latina.
A sra. definiu sua famosa Queer Theory como uma argumentação contra 'o
que a identidade de uma lésbica ou de um gay devam ser'. Não é
justamente a afirmação de sua identidade que esses grupos buscam?
Apenas quero dizer que, ainda que a afirmação da identidade sexual ou de
gênero seja importante, também temos que nos questionar sobre como tais
termos são definidos e a partir de que momento se transformam em outros
tipos de rótulo. Uma pessoa não quer se libertar da homofobia para se
ver aprisionada de novo em outra ideia restrita de identidade. Para mim,
a Queer designa uma forma de aliança em que a sexualidade não seja nem
prescrita nem policiada - a menos que machuque alguém.
Em outra ocasião, a sra. escreveu que 'não nos tornamos humanos ainda' e
que 'a categoria do humano é um processo de vir a ser'. Diante do mundo
hoje, diria que estamos a caminho ou nos afastando desse objetivo?
Vivemos tempos de risco, e não estou segura de que sequer saibamos o que
é ser humano. Parece-me claro que os humanos não são humanos fora de um
mundo social mais amplo, e também não o são quando se definem
exageradamente em oposição à sua natureza animal. Não podem ser humanos,
ainda, se não reconhecem a dependência do meio ambiente em que vivem,
por comida, abrigo, sobrevivência. Temos muito a aprender sobre todas
essas relações que nos fazem humanos. São elas que ampliam nossos
limites, e são essenciais não só para a sobrevivência como para nosso
bem-estar.
http://www.homorrealidade.com.br/2014/08/politica-da-ambiguidade-entrevista-com.html